Quando pensamos no ciclo da água, a maioria de nós lembra daquelas imagens didáticas presentes em livros escolares: nuvens, chuva, rios, infiltração no solo e evaporação. Esse modelo, embora útil, conta apenas parte da história. Ele deixa de fora processos menos conhecidos, mas igualmente vitais, como a absorção de água pelas folhas, em inglês, foliar water uptake (FWU).
Esse fenômeno ocorre quando as plantas conseguem absorver diretamente, por meio de suas folhas, a água presente na atmosfera, seja em forma de neblina, orvalho, garoa ou mesmo de filmes finíssimos de água condensada. Embora ainda pouco difundido fora da comunidade científica, o FWU tem implicações profundas não só para a biologia das plantas, mas também para a agricultura, a restauração ecológica, a formulação de políticas públicas e até mesmo para a forma como ensinamos ciência às futuras gerações.
O que é a absorção foliar de água?
A água pode entrar nas folhas por diferentes estruturas: estômatos, cutículas, tricomas e hidatódios. A eficiência desse processo depende de fatores como a composição química e a molhabilidade da superfície foliar. Em ambientes onde a disponibilidade de água no solo é limitada, essa habilidade representa uma vantagem significativa, permitindo que plantas aproveitem fontes atmosféricas de água que, de outra forma, passariam despercebidas.
Espécies que absorvem água pelas folhas podem, assim, hidratar seus tecidos de forma complementar, o que lhes dá maior plasticidade funcional em períodos de pouca disponibilidade de água no solo. Esse processo é particularmente importante em ecossistemas dependentes da neblina, como as florestas tropicais montanas, as florestas costeiras e os campos rupestres do Brasil como menciono em artigo publicado anteriormente.
Por que isso importa para a ciência?
Estudos têm mostrado que a FWU pode ajudar espécies a manterem o turgor das folhas durante secas sazonais. Porém, essa vantagem também traz custos: folhas mais permeáveis à água para absorver podem igualmente estar mais sujeitas à perda de água para a atmosfera em condições desfavoráveis, como em ambientes com alta demanda evaporativa.
Isso significa que compreender a FWU não é apenas reconhecer uma “estratégia extra” das plantas, mas situá-la dentro de um espectro mais amplo de características fisiológicas, com seus benefícios e riscos. E esse entendimento é crucial para prever como plantas e ecossistemas responderão a cenários de mudanças climáticas, nos quais a frequência da neblina, do orvalho e de outros eventos de molhamento pode se alterar drasticamente.
Implicações para a educação
Aqui entra uma das grandes lacunas: a forma como ensinamos o ciclo da água. Currículos escolares ainda apresentam o ciclo em versões simplificadas, ignorando a contribuição da vegetação para os fluxos hídricos. Raramente se fala da FWU — e quando se fala de plantas, o foco costuma ser apenas na transpiração.
Incluir o FWU nas aulas de ciências poderia transformar a compreensão dos estudantes sobre como plantas e ambientes interagem. Ao invés de um ciclo linear e uniforme, o que temos é uma rede dinâmica e complexa, em que organismos vivos moldam os caminhos da água.
Experimentos simples em sala de aula poderiam aproximar esse conceito dos alunos: pesar folhas antes e depois de imersão em água, comparar espécies de diferentes ecossistemas, ou até mesmo observar a formação de orvalho em plantas expostas à noite. Além disso, disciplinas como geografia e química podem se articular com a biologia, explorando desde a distribuição global dos ecossistemas dependentes de neblina até as propriedades físico-químicas da água que permitem a absorção atmosférica.
Mais do que apresentar uma curiosidade, essa integração ajudaria a mostrar a ciência como um campo dinâmico e conectado à realidade, estimulando o pensamento crítico em tempos de crise climática.
Ciência, comunicação e tomadores de decisão
Se no ensino formal a FWU ainda é invisível, o mesmo vale para políticas públicas. Modelos de gestão hídrica frequentemente ignoram esse processo, simplificando os fluxos de água apenas àqueles mais evidentes. Mas essa negligência pode trazer consequências.
Em projetos de restauração ecológica, por exemplo, selecionar espécies capazes de absorver água do ar pode aumentar as chances de sobrevivência das mudas em ambientes secos ou pedregosos, onde o solo armazena pouca água.
Na agricultura, o uso da pulverização foliar de nutrientes já é consolidado, mas a dimensão hídrica ainda é pouco explorada. Se plantas podem absorver água pela folha, é possível repensar sistemas de irrigação para usar de forma mais eficiente recursos hídricos limitados. Cultivares capazes de absorver água diretamente da atmosfera poderiam ser especialmente úteis em regiões áridas, reduzindo a pressão sobre reservatórios e lençóis freáticos. Esse conhecimento pode ser aplicado também em sistemas agroecológicos e agroflorestais, desenhados em parceria com comunidades locais e movimentos sociais, promovendo práticas agrícolas mais resilientes.
É aqui que entra o papel dos tomadores de decisão. Políticas públicas voltadas para conservação da biodiversidade e manejo de recursos hídricos poderiam se tornar mais eficazes se incorporassem o FWU em seus modelos. Isso inclui desde o planejamento de áreas protegidas em regiões de neblina até a promoção de tecnologias de captação de água atmosférica inspiradas nas próprias plantas.
Em suma: o conhecimento científico sobre FWU pode se tornar uma ferramenta para gestores ambientais, agricultores e planejadores urbanos que buscam soluções inovadoras e sustentáveis para lidar com a escassez hídrica.
Conhecimentos tradicionais e interdisciplinaridade
Embora a ciência acadêmica esteja apenas recentemente dando mais atenção ao FWU, comunidades tradicionais já reconhecem há séculos a importância da neblina como fonte de água. No Deserto do Atacama, nas Ilhas Canárias e em outros ambientes áridos, populações locais desenvolveram técnicas para coletar água da neblina, usando redes, tecidos ou pedras. Esses saberes empíricos são exemplos poderosos de como o conhecimento ecológico tradicional pode antecipar descobertas científicas.
Trazer essas práticas para a sala de aula e para a comunicação científica não só enriquece o aprendizado, mas também promove o respeito por diferentes formas de conhecimento. Essa integração pode inspirar novas soluções para problemas ambientais atuais, unindo ciência acadêmica, tecnologia e práticas culturais em um diálogo mais amplo.
Oportunidades e responsabilidades
O estudo da FWU nos convida a expandir nosso olhar sobre o ciclo da água e a reconhecer que a natureza oferece soluções inovadoras para desafios contemporâneos. Mas essa expansão também traz responsabilidades: pesquisadores precisam compartilhar esse conhecimento de maneira acessível, e tomadores de decisão devem estar dispostos a integrá-lo em suas práticas.
Reconhecer a FWU como parte do ciclo hidrológico não é apenas uma questão acadêmica. Trata-se de compreender que conservar a biodiversidade, investir em educação científica e formular políticas públicas mais precisas são caminhos interligados para enfrentar a crise hídrica e climática.
No fim, essa ciência nos lembra que algumas das respostas para os grandes dilemas ambientais podem estar literalmente no ar que respiramos, ou na água que dele se condensa, silenciosamente, nas superfícies das folhas.
Este texto faz parte de um artigo da Acta Botânica Brasilica (no prelo). E a pesquisa conta com apoio do Instituto Serrapilheira e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.