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A carta de Trump ao Brasil foi escrita também por mãos do Vale do Silício

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A carta de Trump ao Brasil foi escrita também por mãos do Vale do Silício

Quando Donald Trump anunciou tarifas de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos a partir de agosto de 2025, a reação imediata foi política. Muitos viram o gesto como um agrado ao bolsonarismo, já que a carta que comunicava as tarifas fazia uma defesa direta de Jair Bolsonaro e atacava o Supremo Tribunal Federal (STF). Outros apontaram que a medida poderia ser uma resposta estratégica ao fortalecimento dos BRICS, que têm adotado posturas mais firmes em relação à soberania econômica. No entanto, um aspecto crucial passou quase despercebido: o papel das Big Techs nesse jogo geopolítico.

A carta de Trump não é apenas uma retaliação política, é também um instrumento de lobby do Vale do Silício. Basta olhar com atenção para o conteúdo do texto: “centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS às plataformas de mídia social dos EUA”, diz ele, referindo-se às decisões recentes do STF brasileiro. Essa queixa ecoa diretamente os argumentos de empresas como Google, Meta, Amazon e X (ex-Twitter), que têm travado uma ofensiva intensa contra qualquer tentativa de regulação no Brasil.

O pano de fundo é a crescente afirmação da soberania digital brasileira. Em 26 de junho de 2025, o STF tomou uma decisão histórica ao responsabilizar plataformas digitais por conteúdos ilegais, exigindo a remoção imediata desses materiais após notificação. A decisão marca um divisor de águas na regulação da internet no país, alinhando-se com esforços internacionais para conter o avanço do extremismo online e proteger a democracia.

Mas essa decisão é apenas uma das muitas iniciativas que têm incomodado profundamente as gigantes da tecnologia. O julgamento do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, as propostas de regulamentação da inteligência artificial e as minutas de projetos que definem responsabilidades das plataformas digitais colocam o Brasil na vanguarda de uma regulação digital democrática — e isso não agrada nem um pouco às Big Techs.

O recado de Trump: mexer com as Big Techs terá custos

A carta de Trump, portanto, deve ser lida também como uma forma de pressão econômica a serviço desses interesses. Ao ameaçar o Brasil com tarifas punitivas, o presidente dos Estados Unidos está mandando um recado claro: mexer com as Big Techs terá custos. E esses custos serão impostos sob a máscara de um nacionalismo econômico que, na prática, serve ao poder corporativo do Vale do Silício.

Esse movimento é coerente com uma lógica já conhecida: o discurso da “liberdade de expressão irrestrita” tem dois principais beneficiários. De um lado, setores da extrema-direita, que precisam de um ambiente digital sem freios para espalhar desinformação, discurso de ódio e propaganda antidemocrática. De outro, as próprias empresas de tecnologia, que lucram com esse caos e resistem a qualquer tentativa de responsabilização.

A resistência dessas empresas se acentua com o avanço do projeto que regulamenta a Inteligência Artificial (PL 2.338/2023), aprovado pelo Senado em 2024 e agora em tramitação na Câmara dos Deputados. O projeto propõe regras que protegem os direitos fundamentais, exigem transparência algorítmica e classificam sistemas de IA de acordo com seus riscos. Tudo isso contraria os interesses das Big Techs, que têm se oposto ferozmente a pontos como: a obrigação de informar o uso de obras protegidas por direitos autorais no treinamento de modelos; a responsabilização proporcional ao risco social dos sistemas; e a criação de mecanismos regulados de negociação entre plataformas e criadores.

Essas medidas, ao exigir mais transparência e responsabilidade, significam mais custos e menos liberdade de operação para empresas acostumadas a atuar em zonas cinzentas. E por isso a carta de Trump ao presidente Lula é também um ultimato do Vale do Silício.

Brasil se articula em favor de sua soberania digital

Não podemos ignorar o fato de que essa ofensiva acontece justamente quando o Brasil começa a se articular internacionalmente em favor de uma soberania digital. Dentro do BRICS, o país tem defendido políticas que reafirmam o direito dos povos de decidir como suas infraestruturas tecnológicas devem ser organizadas, com ênfase em justiça social, proteção de dados e acesso equitativo ao conhecimento. Essa postura contraria diretamente os interesses das plataformas que, até aqui, dominaram o debate global com uma visão centrada no lucro e no controle algorítmico opaco.

É preciso, portanto, ir além da leitura imediata da carta de Trump como uma peça de apoio ao bolsonarismo ou de reação geopolítica. Trata-se de uma estratégia articulada para barrar o avanço de regulações nacionais e regionais que ameacem o domínio das grandes empresas de tecnologia. É uma ofensiva contra qualquer tentativa de países do Sul Global de construírem um ecossistema digital mais justo, soberano e democrático.

Nesse contexto, a defesa da soberania digital brasileira torna-se ainda mais urgente. Mas essa soberania não pode ser confundida com um projeto estatal de controle autoritário da rede. Estamos falando de soberania digital popular: a capacidade de a sociedade civil, comunidades, pesquisadores e legisladores decidirem coletivamente como as tecnologias devem ser desenvolvidas e utilizadas, com base em princípios de justiça, equidade, direitos humanos e sustentabilidade.

Defender essa soberania implica, sim, enfrentar o poder descomunal das plataformas digitais. Mas implica também construir alternativas: fomentar tecnologias abertas, estimular o desenvolvimento local, garantir acesso universal à internet e à educação digital, e reforçar o papel do Estado como garantidor de direitos e não como censor.

A carta de Trump deixa claro que o Brasil está incomodando, e isso é, paradoxalmente, um bom sinal. Estamos incomodando porque deixamos de ser apenas mercado e começamos a ser ator. Porque não queremos mais aceitar que nossa infraestrutura digital seja um território colonizado. Porque ousamos propor que a internet pode ser governada por regras democráticas, e não por CEOs bilionários em escritórios na Califórnia.

Defender a soberania digital não é ser contra os EUA ou contra a tecnologia. É ser a favor de um país que possa decidir seus próprios rumos, inclusive no mundo digital. É garantir que a tecnologia esteja a serviço da sociedade, e não o contrário ou exclusivamente aos seus CEOs e acionistas.

Como vemos, a carta de Trump diz muito mais do que parece à primeira vista. E o Brasil precisa estar preparado para ler as entrelinhas, e responder à altura.

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