Em meio à negação, ao desmonte das políticas científicas e ao colapso sanitário que marcou o Brasil entre 2020 e 2022, as universidades públicas brasileiras e seus pesquisadores se tornavam protagonistas de uma das maiores mobilizações científicas da história recente do país. Enquanto o negacionismo se espalhava, a ciência brasileira se manteve firme, produzindo dados, vacinas, análises, soluções e ainda combatendo a desinformação científica.
A pesquisa intitulada “Brazilian Public Universities’ Contributions to Global Covid-19 Research: Publications, International Collaboration, and Impact” foi conduzida por nós cientistas do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência – Centro SoU_Ciência (Unifesp) e acabou de ser publicada nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.
O estudo elaborou indicadores bibliométricos com base em dados coletados do Scopus e do SciVal e mensurou a resposta brasileira à pandemia em termos de número de publicações.
Aumento de 152 vezes
Os resultados mostram que mesmo diante de um cenário político e econômico adverso, em 2022, 5,9% de todas as publicações científicas brasileiras trataram da covid-19, proporção superior à média mundial, que foi de 4,8%.
Significa dizer que o esforço brasileiro para publicar artigos sobre esse tema excedeu o do resto do mundo. As universidades públicas responderam por dois terços dessa produção. A pesquisa também mostra que o índice de impacto das publicações brasileiras sobre o tema superou o de artigos semelhantes em nível global, algo inédito para um país como o Brasil.
Em 2019, havia 1.029 publicações sobre o tema coronavírus no mundo e 22 no Brasil. Em apenas dois anos, o tema tornou-se um dos assuntos mais investigados do planeta, atingindo 156.736 publicações em 2021, um aumento impressionante de 152 vezes.
A quantidade de artigos publicados pela comunidade científica mundial em resposta à pandemia torna-se evidente quando se compara a produção sobre o tema com outros importantes campos de pesquisa. O assunto superou tópicos consolidados como mudanças climáticas e tópicos emergentes como inteligência artificial e só não ultrapassou as publicaçoes sobre câncer.
No Brasil o cenário foi ainda mais expressivo, a produção científica sobre covid-19 superou todos os outros grandes temas, inclusive o câncer. O esforço brasileiro em torno da pandemia revelou não apenas a capacidade de mobilização da comunidade científica nacional, mas também a importância estratégica da pesquisa em saúde pública no país.
Cenário político
O resultado seria notável em qualquer contexto, mas ganha dimensão histórica diante do cenário político da época. Durante o auge da pandemia, o então governo federal negava a gravidade da doença e desacreditava as vacinas, enquanto cientistas brasileiros se desdobravam em redes internacionais para gerar dados, testes e protocolos.
O estudo também aponta que, apesar dos excelentes resultados, o período foi marcado por redução de investimentos públicos em ciência e tecnologia. Desde a ruptura do processo democrático em 2016, o orçamento federal para pesquisa sofreu cortes significativos, afetando laboratórios, bolsas e programas de fomento.
Ainda assim, os cientistas brasileiros mantiveram um alto nível de produtividade e relevância internacional, demonstrando a força institucional e a capacidade de mobilização das universidades públicas.
Soberania científica
Nós, pesquisadores das Unifesp, UFRJ, UFSCar e Fiocruz destacamos que essa capacidade de resposta só foi possível graças ao investimento de décadas em pesquisa básica e na formação de pesquisadores. A pandemia mostrou que a ciência salva vidas e que, financiar a ciência mantendo um parque de equipamentos estado da arte se torna algo fundamental para a soberania nacional e a garantia da saúde pública.
Acreditamos que, de fato, a contribuição significativa do Brasil para a superação da pandemia deveu-se, em grande parte, aos investimentos em C&T realizados entre 2007 e 2014 não apenas pelo governo federal, mas também pelas 27 agências estaduais de fomento à pesquisa. Essas agências oferecem programas locais, bolsas de estudo e auxílios para apoiar o desenvolvimento de cientistas em seus respectivos estados.
Lembramos que o Brasil já havia mobilizado grande parte de sua capacidade científica e institucional em resposta a outras emergências sanitárias, como a epidemia de zika vírus, a dengue e a febre chikungunya. Essas experiências contribuíram para o fortalecimento de redes de pesquisa, vigilância e inovação que se mostraram fundamentais na resposta à pandemia de covid-19.
Colaborações com 205 países
Para nós, este estudo é um retrato de resistência intelectual e institucional. Mesmo com recursos escassos, as universidades públicas articularam colaborações com 205 países em todos os continentes, tendo os Estados Unidos, Reino Unido e Itália como principais parceiros. A proporção de publicações em coautoria internacional sobre covid-19 foi maior do que a média brasileira em qualquer outro tema científico e o estudo mostra algumas tendências interessantes:
Entre os países que mais colaboraram com pesquisadores brasileiros em estudos sobre covid-19, os Estados Unidos e o Reino Unido se destacam, respondendo por 70% das publicações conjuntas. A Itália ocupa a terceira posição, seguida por Espanha, Alemanha, França e Portugal, refletindo o fato de a pandemia ter atingido a Europa antes das Américas. Nesse cenário, os pesquisadores europeus acabaram compartilhando dados precoces sobre o novo coronavírus com outros pesquisadores do mundo.
No total, 37,4% das publicações brasileiras sobre covid-19 envolveram colaboração internacional, superando a média de 34,9% observada em todas as áreas do conhecimento.
Além disso, o levantamento indica que 18 dos 22 países parceiros já tinham histórico de colaboração científica com o Brasil, evidenciando que relações estabelecidas anteriormente facilitaram a rápida articulação durante a pandemia.
Falta fortalecer parcerias na América Latina
No entanto, nosso estudo aponta que a comunidade científica brasileira precisa fortalecer seus laços de pesquisa com seus vizinhos, que compartilham problemas sociais, econômicos, de saúde e ambientais semelhantes. Os países latino-americanos não figuraram entre os 10 principais parceiros brasileiros para colaboração em pesquisa nem em temais gerais e nem sobre a covid-19.
Entre 2019 e 2023, 419.364 artigos foram publicados por autores brasileiros, dos quais 66,5% tiveram pelo menos um autor das 20 principais universidades. A Universidade de São Paulo (USP) liderou esse ranking.
Rede viva de cooperação
O trabalho revela ainda o valor social e estratégico da ciência pública. As universidades e institutos de pesquisa brasileiros atuaram não apenas na geração de conhecimento, mas também na defesa da vida. Em outras palavras, enquanto a política nacional isolava o Brasil, a ciência brasileira resistia, mostrando a força da sua comunidade.
O estudo expõe uma rede viva de cooperação científica que atravessou não apenas fronteiras, mas também subáreas de pesquisa. É fato que 65% das publicações brasileiras sobre covid-19 vieram das ciências da saúde, mas as ciências sociais e humanas também tiveram papel marcante, analisando os impactos psicológicos, econômicos e políticos da crise sanitária.
A crise global causada pela covid-19 intensificou questões como ansiedade, depressão e medo, além das questões relacionadas à covid longa, que continuam sendo estudadas até hoje. Um retrato multifacetado do país em colapso.
Recado científico
Mais do que celebrar o desempenho das universidades públicas durante a pandemia, nosso estudo é um chamado à responsabilidade política de garantir o futuro da ciência brasileira. Como o próprio trabalho demonstra, foi a ciência pública que ajudou o país quando o Estado falhou.
O alerta final é claro: sem financiamento estável e políticas de longo prazo, a resiliência demonstrada pode não se repetir em futuras crises globais, principalmente diante dos cortes que as universidades públicas continuam sofrendo. A ciência brasileira resistiu, mas precisa ser cuidada.
