Uma das principais promessas de campanha de Donald Trump para retornar à Casa Branca, em 2025, foi jurar que os Estados Unidos não se envolveriam em “guerras estúpidas e sem fim” — uma crítica à política intervencionista que marcou as últimas décadas, especialmente com as guerras no Afeganistão (2001-2021) e no Iraque (2003-2011). A síntese dessa promessa se expressa no próprio lema trumpista “America First”. Essa posição fazia parte não apenas de uma crítica à política externa de seu país, mas também era parte de sua cartilha conspiracionista contra o “deep state”, o suposto aparato burocrático e militar permanente que, segundo Trump e seus apoiadores, conduz os EUA a guerras. Esse aparato seria guiado pelo “globalismo” de uma elite que colocaria interesses internacionais e alianças multilaterais acima dos interesses nacionais.
Mas, em 21 de junho de 2025, Trump ordenou o bombardeio de três instalações nucleares no Irã (Fordow, Natanz e Esfahan) em operação coordenada com Israel. A reação imediata da mídia e das redes sociais evocou o fantasma da Terceira Guerra Mundial. Até o momento, porém, este não parece ser o início de uma guerra nos moldes do século XX, e sim mais um capítulo do modelo de guerra que os EUA vêm aperfeiçoando desde 11 de setembro de 2001: intervenções pontuais, juridicamente ambíguas, tecnologicamente sofisticadas e de alto impacto midiático. Mas este modelo ganha novos contornos no segundo mandato de Trump.
Do campo de batalha à exceção permanente
Desde os ataques de 11 de setembro, a política externa dos EUA se reorganizou em torno da chamada “guerra contra o terror”, autorizada legalmente pelo AUMF (Authorization for Use of Military Force), uma resolução suficientemente vaga sancionada pelo então presidente George W. Bush, apenas 7 dias após os atentados. Na prática, é uma autorização ampla e indeterminada concedida pelo Congresso ao presidente dos Estados Unidos para usar força militar contra nações, organizações ou pessoas consideradas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro. E que, desde então, tem sido usado permitindo o uso contínuo da força militar sem declarações formais de guerra e sem a necessidade de autorização do Congresso americano, já que a Constituição dos EUA determina que somente o Congresso pode declarar guerra.
Desde então, presidentes têm se aproveitado dessa brecha política e legal para que o poder executivo expanda seu poder militar por vias paralelas ao controle do Congresso. O que nasceu como uma espécie de resposta emergencial e estado de exceção tornou-se a nova normalidade da política nos EUA. Bush inaugurou esse ciclo no Afeganistão e no Iraque. Obama o refinou com ataques por drones, assassinatos seletivos e operações especiais. Trump, embora tenha prometido o “America First”, também ordenou a morte do general iraniano Qasem Soleimani em 2020. Biden prosseguiu de forma semelhante.
A chamada “guerra ao terror” não apenas expandiu o seu raio de ação militar (em que o inimigo é mutável e o campo de batalha é expandido), como também reconfigurou as estruturas internas de poder, alimentando o que o filósofo italiano Giorgio Agamben identifica como um estado de exceção permanente, em que a duração do combate é indeterminada. Além da concentração do poder militar nas mãos do Executivo, esse estado de exceção se expressa em outras frentes: no endurecimento das políticas migratórias e controle das fronteiras, no aumento do aparato de vigilância interna, deportações e prisões sem previsão legal e no uso extensivo de tecnologias que tornam o conflito menos visível, mas não menos letal. Neste contexto, a militarização da política externa e o enrijecimento da política interna se tornaram faces de um mesmo processo.
Entre guerra e populismo midiático
A operação de junho de 2025 não pode ser dissociada do contexto de escalada entre Israel e Irã. Desde o início do ano, ataques e contra-ataques entre os dois países se intensificaram, atingindo civis e militares. Israel já havia iniciado bombardeios contra alvos estratégicos no Irã com apoio logístico americano. Porém, a entrada direta dos EUA no conflito marca uma inflexão, não apenas na política externa, mas na própria agenda trumpista internamente.
Donald Trump, de volta à presidência em 2025, se encontra em um dilema. De um lado, precisa mostrar força e liderança internacional, especialmente após críticas de que os EUA estavam “passivos” diante do avanço iraniano. De outro, corre o risco de desagradar sua própria base, especialmente o setor mais isolacionista e nacionalista, que o elegeu sob o lema “America First”. Mas a movimentação militar pode ser lida tanto como uma tentativa de reposicionar os EUA como liderança global quanto como um gesto interno de reforçar a imagem do “comandante-em-chefe forte”.
Mas há riscos: aumento dos preços do petróleo, retaliações contra aliados e instalações americanas no Oriente Médio, e o custo financeiro e político de um possível envolvimento prolongado. Além disso, há o perigo de uma maior guinada autoritária por parte de Trump. Uma guerra externa é, historicamente, um terreno fértil para expansões do poder executivo — como mostrou o historiador Arthur Schlesinger Jr. em seu The Imperial Presidency — conceito clássico que vem sendo recuperado para analisar o quanto Trump já vem demonstrando disposição para tensionar os limites constitucionais.
O novo rosto da guerra global
O recente bombardeio ao Irã inevitavelmente desperta temor — não apenas pelas possíveis repercussões geopolíticas, mas também pelos riscos ambientais e humanitários envolvidos, especialmente diante da destruição de instalações nucleares, o que configura, inclusive, violação de tratados internacionais de guerra. Ainda assim, o que vemos é a continuidade de um estado de exceção, legitimado pelo discurso da segurança e sustentado por tecnologias militares sofisticadas, interpretações jurídicas flexíveis e a fragilização de mecanismos formais de responsabilização e transparência.
No caso de Donald Trump, essa nova guerra adquire também um formato midiático espetacularizado: o ataque é transformado em performance política, com declarações como “um sucesso espetacular” e a afirmação de que o complexo de Fordow teria sido “completamente obliterado”. No entanto, a própria resposta iraniana coloca em xeque o real impacto da ação — Teerã informou que as instalações já haviam sido evacuadas, sem vazamento radioativo, sugerindo que o urânio enriquecido poderia ter sido removido antes do ataque.
A dubiedade entre espetáculo e eficácia é central nesse novo modelo de guerra: trata-se menos de vitórias estratégicas concretas e mais da produção de narrativas e imagens de força e controle. Essa encenação contribui para reforçar a figura do presidente como comandante supremo, obscurecendo os reais efeitos das ações e reduzindo a capacidade de escrutínio público.
A guerra tornou-se mais tecnológica, menos visível e, por isso mesmo, mais difícil de ser contestada. Mas justamente a opacidade desses ataques, a erosão de controles democráticos e o uso da guerra como ferramenta de consolidação de poder presidencial exigem vigilância. No caso de Donald Trump, o uso da guerra como espetáculo reforça um projeto de poder centrado na figura do líder, à revelia de instituições e controles constitucionais. O que está em jogo, portanto, não é apenas a estabilidade regional no Oriente Médio, mas os próprios limites da democracia global diante da possibilidade concreta de uma maior escalada autoritária operada sob o disfarce da segurança global.