A recente popularização das Inteligências Artificiais Generativas (IAGs) tem provocado muitos debates sobre o futuro do trabalho. A capacidade das IAGs de “criar” textos, imagens e vídeos via comandos simples, desempenhando em muito menos tempo tarefas que antes eram realizadas exclusivamente por pessoas tem provocado um misto de medo e fascínio. De um lado, entusiastas enaltecem as inúmeras possibilidades de aumento da produtividade. De outro, temerosos defendem que apenas nós, humanos, somos detentores de uma criatividade autêntica, capaz de criar algo genuinamente novo.
Rusgas à parte, ambos os grupos concordam que o cenário tecnológico é de intensa transformação e que há postos de trabalho em perigo de extinção.
A indústria da moda, logicamente, não está imune a essas mudanças. Aliás, ela nunca esteve. Basta lembrar que a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII na Inglaterra, foi uma revolução essencialmente têxtil, já que as primeiras grandes inovações técnicas surgiram justamente na produção de fios e tecidos.
A promessa da inteligência artificial na indústria da moda
Em 17 de novembro, a revista Business of Fashion e a consultoria McKinsey & Company divulgaram “The State of Fashion 2026”. Lançado anualmente desde 2016, esse documento elenca desafios, oportunidades e tendências para a indústria global da moda. A inteligência artificial, como não poderia deixar de ser, está listada entre os temas que moldarão o setor no próximo ano.
De acordo com o relatório, o uso da IA está deixando de ser uma vantagem competitiva para se tornar uma necessidade empresarial. Automação e IA generativa devem remodelar papéis, habilidades e formas de trabalhar em uma intensidade comparável à disrupção provocada pelos computadores e internet. A expectativa é que, até 2030, 30% do trabalho em diferentes elos da cadeia da moda na Europa e nos Estados Unidos seja automatizado por IAG e outras tecnologias.
Enquanto isso, nas bainhas do mundo…
Apesar das previsões de automação, a cadeia da moda funciona, na prática, graças a um grande volume de trabalhadores de baixa qualificação. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que, no mundo, 94 milhões de pessoas estejam ocupadas nessa cadeia. Dessas, pelo menos 72 milhões atuam nas etapas de fabricação de vestuário. Entretanto, há motivos para acreditar que as estatísticas oficiais subestimem o número real em pelo menos alguns milhões, devido à alta frequência de trabalho informal.
A maior parte desses trabalhadores não está na Europa e nos Estados Unidos, regiões para as quais está previsto o aumento da automação pelo uso de IA generativa. Isso porque a maior parcela da produção mundial de vestuário ocorre no que poderíamos chamar de “bainhas do mundo”, o Sul Global.
Em 2024 havia na Ásia 64 milhões de trabalhadores na produção de itens de vestuário, dos quais 15.535 milhões estavam na China. Nos últimos anos, a África emergiu como um novo destino para indústrias de confecção. Apesar de sua participação ainda ser pequena, correspondendo a apenas 1% da produção global, estima-se que 1.6 milhão de pessoas trabalhem na produção de vestuário na África e no Oriente Médio.
No Brasil, o setor de confecção é o segundo maior empregador da indústria de transformação, perdendo apenas para o de alimentos e bebidas. De acordo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT), há 1.3 milhão de trabalhadores formais produzindo vestuário. Se adicionados os postos indiretos, a quantidade aumenta para 8 milhões.
Por trás das máquinas, há trabalhadores precarizados
De fato, há um impulso para a automação na moda, mas ele se dá, em sua maior parte, nas etapas de design (ou de criação dos produtos), na gestão da cadeia de suprimentos, na gestão de resíduos e na otimização das vendas. Já a etapa da costura propriamente dita, historicamente, tem sido lenta na adoção de novas tecnologias como as de robótica e automação.
Um bom exemplo disso é que, desde os anos 1980, já existem sewbots, os robôs de costura. Entretanto, eles têm sido ignorados pela indústria. O motivo é simples: é mais lucrativo produzir com trabalhadores de baixo custo, majoritariamente situados no Sul Global. Nesse cenário, mesmo com toda expansão tecnológica, as relações informais de contratação seguem sendo prática comum na confecção. Sistemas “antigos” de trabalho (como o trabalho industrial doméstico e o trabalho infantil) nunca deixaram de ser utilizados.
Os dados do Global Slavery Index 2023 ajudam a dimensionar o quão distante a indústria de confecção está da automação e da modernização dos processos produtivos, e o quão próxima ela permanece de relações de trabalho “arcaicas”. Itens de vestuário são a segunda categoria de produtos com maior risco de terem sido confeccionados por trabalhadores em condição de escravidão contemporânea, atrás apenas dos eletrônicos. O documento revela ainda que US$ 147.9 bilhões em roupas e calçados importados pelos países do G20 estão sob risco de terem sido fabricados por pessoas submetidas a trabalho forçado.
Automação e precarização do trabalho: direito e avesso do mesmo tecido
Pode parecer que esses dados divergem das tendências apontadas pelo “The State of Fashion 2026”. Mas analisando mais a fundo, percebemos que não. No meu livro, “A indústria da moda no capitalismo tardio: design, ideologia e relações de trabalho” (Rio Books / FAPERJ), demonstro que esse processo está longe de ser novidade na dinâmica capitalista. Enquanto os países centrais tendem a continuar se especializando nas indústrias que utilizam tecnologia altamente sofisticada, os países periféricos devem permanecer sendo fornecedores de força de trabalho barata aos setores da indústria que têm as características adequadas à produção nos moldes “antigos”.
Entre eles está o de confecção de vestuário, que é intensivo em trabalho de baixa qualificação, tem extrema divisão do trabalho, além de variabilidade dos produtos, dos processos de montagem e das matérias-primas têxteis. Por isso, ele é um dos “eleitos” para não ter a automação completada. Assim, a costura das nossas roupas continua a ser predominantemente realizada pelo processo habitual: trabalhadores manipulando à mão pedaços de tecido através de máquinas de costura.
Sua roupa não foi costurada por IA. E, ao que tudo indica, pelo menos por ora, não será.
