Apesar de sua importância ecológica, social e econômica, os ecossistemas aquáticos, especialmente os de água doce, permanecem entre os mais negligenciados nas estratégias globais de conservação, uma prática ainda marcada por critérios limitados e viés em favor de ambientes marinhos e de espécies carismáticas, deixando de fora grande parte da diversidade aquática, sobretudo as presentes em rios, lagos e igarapés tropicais.
Essa invisibilidade também se reflete nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que negligenciam a conservação da biodiversidade de água doce, notavelmente ausente tanto no ODS 14 (focado em oceanos) quanto no ODS 15 (voltado a ambientes terrestres).
Enfrentar os desafios da conservação aquática exige a diversificação das espécies representadas e a ampliação dos critérios de seleção. Para isso, é fundamental a integração efetiva entre a ciência, as políticas públicas e os saberes locais. Nesse sentido, é fundamental que a pesquisa científica dê visibilidade às espécies invisibilizadas e reconheça também o papel das populações tradicionais na proteção das águas continentais.
O que a ciência mostra sobre a conservação de espécies aquáticas?
Um estudo recém-publicado na revista Water Biology and Security aborda diretamente essa lacuna ao examinar a sub-representação das espécies aquáticas, especialmente as de água doce, nas estratégias globais de conservação.
Intitulado “Use of aquatic organisms as flagship species in selecting priority areas for conservation”, o artigo foi desenvolvido por pesquisadores de instituições brasileiras e internacionais incluindo a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e o Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve (CCMAR/UALG). Eles realizaram uma análise abrangente da literatura científica sobre o uso de espécies aquáticas como bandeiras para a seleção de áreas prioritárias para conservação.
A metodologia envolveu a análise de 400 artigos científicos publicados entre 1997 e 2024 nas bases de dados Scopus e Web of Science. O objetivo foi compreender quais espécies são mais frequentemente utilizadas como bandeiras, quais ambientes aquáticos recebem mais atenção, quais métodos são empregados e quais critérios orientam a escolha dessas espécies.
Os resultados apontam que os grupos mais representativos foram os do filo Chordata, que concentram mais de 70% das espécies analisadas, com destaque para as classes Actinopterygii (peixes ósseos), Mammalia (mamíferos aquáticos), Reptilia (répteis) e Aves.
Dentre esses grupos, destaca-se o predomínio de espécies carismáticas e de ampla distribuição, como a tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), a tartaruga-verde (Chelonia mydas) e a lontra-europeia (Lutra lutra).
Essas espécies são frequentemente associadas a status de conservação preocupantes, como “Vulnerável” (VU), “Em perigo” (EN) ou “Criticamente em perigo” (CR), reforçando seu papel como símbolos de alerta sobre a perda da biodiversidade aquática.
No entanto, algumas espécies com menor risco, como a erva marinha Posidonia oceanica (menor preocupação), também aparecem na lista, destacando a importância de outros atributos como o papel ecológico e o valor cultural. A presença de plantas aquáticas e invertebrados, embora minoritária, sinaliza o potencial de ampliar a diversidade taxonômica das espécies bandeira e integrar estratégias mais inclusivas na conservação dos ecossistemas aquáticos.
Em suma, os resultados revelam forte concentração na pesquisa e na conservação em ambientes marinhos e em espécies de grande apelo carismático, como peixes grandes e mamíferos aquáticos. Em contrapartida, espécies de rios, lagos e igarapés tropicais permanecem praticamente invisíveis na produção científica e nas estratégias de conservação analisadas.
Além disso, o estudo identificou que os critérios utilizados para a escolha de espécies aquáticas como bandeiras da conservação são, em sua maioria, estreitos e concentrados em poucos atributos, o que limita o alcance das estratégias. Entre os principais critérios destacados, estão:
Status de conservação: Espécies classificadas como ameaçadas em listas nacionais e internacionais, como a Lista Vermelha da IUCN, são amplamente utilizadas como bandeiras, o que representa uma estratégia de sensibilização frente ao risco de extinção.
Atratividade visual e carisma: Organismos com aparência considerada “carismática” ou de fácil empatia, como golfinhos, tartarugas, arraias e grandes peixes, são mais frequentemente escolhidos, mesmo quando seu papel ecológico é algumas vezes menos relevante do que o de outras espécies pouco conhecidas.
Importância ecológica: Alguns estudos destacam o papel funcional das espécies, como sua posição trófica ou sua contribuição à integridade do ecossistema aquático. No entanto, esse critério ainda é pouco utilizado em comparação aos atributos visuais.
Distribuição geográfica e endemismo: Espécies com distribuição restrita ou endêmicas de regiões ameaçadas têm sido valorizadas como potenciais bandeiras, mas aparecem com menor frequência nas publicações analisadas.
Importância cultural e econômica: Critérios como o valor simbólico para comunidades tradicionais ou a relevância econômica da espécie para pesca e turismo ainda são raramente considerados, revelando um distanciamento entre ciência, políticas públicas e realidades locais.
O predomínio de critérios visuais ou conservacionistas clássicos demonstra uma visão restrita sobre o papel das espécies bandeira e limita o potencial transformador dessa abordagem nas políticas de conservação. Diante disso, o estudo propõe urgentemente uma ampliação dos critérios, com maior integração de aspectos ecológicos, socioculturais e territoriais.
O desequilíbrio geográfico da pesquisa científica
Apesar do avanço na produção acadêmica sobre espécies aquáticas como bandeiras de conservação, os dados revelam um forte desequilíbrio geográfico. A maioria dos estudos é conduzida por instituições do Norte Global (América do Norte, Europa e Ásia), o que acentua o viés dos resultados. Em contrapartida, países tropicais, que são megadiversos e possuem maior vulnerabilidade ecológica, têm participação reduzida, perpetuando a invisibilidade de seus ecossistemas de água doce e das espécies neles contidas.
Esse padrão evidencia a necessidade urgente de descentralizar a pesquisa e fortalecer a ciência produzida no Sul Global, promovendo maior protagonismo de pesquisadores e instituições locais na formulação de agendas, metodologias e políticas públicas de conservação. Em regiões como a Amazônia, esse protagonismo é essencial para que as estratégias reflitam as realidades ecológicas, sociais e culturais específicas dos territórios aquáticos e sejam verdadeiramente eficazes.
Critérios limitados e distanciamento das práticas locais
Outro dado importante revelado pelo estudo é que os critérios empregados para eleger espécies aquáticas como bandeiras permanecem restritivos e pouco conectados aos contextos socioculturais locais. Há uma clara predominância de atributos visuais, como carisma e atratividade estética, em detrimento de dimensões como importância cultural, econômica, religiosa ou simbólica para as comunidades que vivem às margens dos rios, lagos e igarapés.
Essa lacuna reforça o distanciamento entre a ciência e as práticas tradicionais, dificultando a construção de estratégias de conservação mais justas, participativas e eficazes. Sem reconhecer o valor das espécies para as populações locais, os projetos de conservação correm o risco de impor soluções externas, pouco enraizadas nos territórios, o que compromete sua legitimidade e sustentabilidade a longo prazo.
Esta pesquisa representa um passo fundamental para compreender como as estratégias de conservação, especialmente o uso de espécies bandeira, podem ser aprimoradas a partir de uma perspectiva mais inclusiva, diversa e conectada aos territórios aquáticos amazônicos. Ao alinhar a produção científica aos saberes e às demandas das comunidades tradicionais, a iniciativa busca fortalecer políticas públicas e práticas locais que contribuam para a proteção da biodiversidade aquática e para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
O estudo relatado acima integra as ações do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT–SynBiAm), do Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia Oriental (PPBio-AmOr) e do Programa Ecológico de Longa Duração da Amazônia Oriental (PELD-AmOr), que atuam na articulação entre ciência, conservação e sustentabilidade na região.









