No início deste ano, a Polícia Federal brasileira revelou uma complexa rede criminosa que se infiltrou nas redes de distribuição de combustíveis do país. O que pareciam ser postos de gasolina comuns eram, na verdade, pontos de uma grande máquina de lavagem de dinheiro utilizando diesel e etanol para transformar dinheiro sujo em recursos, aparentemente, legítimos.
Segundo o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, mais de 1.000 postos de combustíveis em todo o país estavam sob o controle de organizações criminosas. A trama se intensificou alguns meses depois, quando a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro lançou operações em larga escala contra a chamada “máfia dos combustíveis”, desmantelando um esquema que vendia milhões de litros de combustíveis adulterados. A operação revelou como empresas de fachada escondiam fluxos financeiros ilícitos, investigadores corruptos ignoravam irregularidades, e uma rede de empresas fantasmas emitia notas fiscais falsas.
Em todo o Brasil, o crime organizado vem se diversificando para além do narcotráfico, tráfico de armas e crimes ambientais, penetrando na economia formal, incluindo os setores de biocombustíveis e combustíveis fósseis. Facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e milícias formadas por policiais da ativa e aposentados estão expandindo suas operações para incluir roubo de combustível, contrabando, evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
Essa mudança do submundo do crime brasileiro evidencia sua capacidade de adaptação ao explorar mercados legítimos e diversificar suas fontes de renda. Além disso, representa uma ameaça direta à segurança pública, à estabilidade econômica, ao meio ambiente e à própria governança democrática.
A indústria de combustíveis é um alvo atrativo para o crime organizado, justamente por seu alto fluxo de caixa, demanda constante e facilidade de manipulação. Este não é um problema novo. Na verdade, os principais distribuidores de combustíveis do Brasil, como Ale, BR, Ipiranga e Raízen,já alertaram sobre a infiltração criminosa. Os custos dessas atividades ilegais são significativos. Segundo o Instituto Combustível Legal (ICL), os lucros ilegais gerados por postos de gasolina chegaram a R$ 23 bilhões(US$ 3,89 bilhões) em 2021.
Um estudo de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)revelou que organizações criminosas movimentaram aproximadamente R$ 146,8 bilhões (cerca de US$ 25,4 bilhões) em setores como combustíveis, ouro, cigarros e bebidas. O setor de combustíveis e lubrificantes, sozinho, representou cerca de R$ 61,4 bilhões (US$ 10,2 bilhões),superando as receitasdo tráfico de cocaína.
Já um estudo de 2024 constatou que os prejuízos com roubo de cargas, assaltos relacionados a combustíveis e fraudes geraram perdas anuais de R$ 29 bilhões, e a Vibra Energia estimou que cerca de 13 bilhões de litros de combustível estavam sendo comercializados por meios “irregulares”.
Grupos criminosos organizados empregam diversas estratégias para explorar o setor de combustíveis. A mais amplamente relatada envolve o uso de postos de gasolina “piratas” — estabelecimentos que desrespeitam normas de segurança e vendem combustível adulterado e roubado.
Investigações policiais revelaram centenas de postos ligados a pessoas indiciadas ou condenadas por crimes relacionados a combustíveis, desde 2015. Em 2019, por exemplo, a BR removeu730 postos de sua rede suspeitos de envolvimento em “irregularidades”. Em 2023, o PCC teria ampliado sua influência para cinco usinas de etanol e aproximadamente 1.100 dos 9.000 postos de São Paulo, representando mais de 12% do total do estado.
Em 2024, a polícia afirmou que até 30 postos de gasolina no Rio de Janeiro estavam sob controle do PCC. Paralelamente, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) informou que as infrações relacionadas ao uso de metanol — substância tóxica comumente usada para adulterar combustíveis — aumentaram em mais de 73% no ano anterior.
Fraude e evasão fiscal também são táticas comuns usadas pelo crime organizado no setor de combustíveis. No Brasil, os impostos sobre o etanol variam de estado para estado. Essas discrepâncias criam incentivos para grupos criminosos comprarem combustível em estados com impostos mais baixos e revenderem em estados com impostos mais altos, lucrando com a diferença.
Um estudo de 2019 realizado pela FGV estimou que a evasão fiscal relacionada a combustíveis gerou R$ 7,2 bilhões (US$ 1,3 bilhão), com grandes lucros para donos de postos que lavavam dinheiro. Há ainda esquemas envolvendo fraude tributária na produção de combustível e importações ilegais de diesel. Um caso de destaque envolveu a empresa Copape, que vendia combustível abaixo do preço de mercado ao sonegar impostos de importação e adulterar o produto. A empresa foi posteriormente fechada em meio a acusações de ligação com o PCC.
Outra estratégia comum adotada por grupos criminosos envolve o roubo direto de dutos. No Brasil, assim como no México, organizações criminosas extraem combustível diretamente de oleodutos. Essa prática geralmente leva a grandes prejuízos econômicos e representa riscos ambientais e de segurança pública. As quadrilhas frequentemente instalam desvios clandestinos nos oleodutos para extrair o combustível.
Esse processo requer conhecimento preciso da rede de dutos, sugerindo possível conivência de pessoas de dentro do sistema. Em 2019, por exemplo, a Petrobras identificou mais de 261 ocorrências desse tipo no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Rio, a polícia também descobriu um sistema de tubulações subterrâneas próximo à refinaria de Duque de Caxias usado para extrair petróleo cru. O combustível roubado era então revendido por canais ilícitos ou misturado com suprimentos legalizados.
Há também registros de ataques diretos a funcionários e à infraestrutura, embora esses incidentes sejam menos noticiados. Em 2019, por exemplo, mais de 40 pessoas foram presas no Rio de Janeiro sob suspeita de extorquir e assassinar prestadores de serviços da Petrobras. O grupo foi descrito como altamente organizado, com divisões específicas para intimidação, ataques a dutos, transporte de combustível e monitoramento das ações policiais. Segundo pesquisadores, o combustível roubado é frequentemente vendido a empresas de asfalto, donos de postos clandestinos e outros.
A consolidação do crime organizado nos biocombustíveis, como açúcar e óleo de palma, levou a confrontos diretos com autoridades estatais. Em agosto de 2024, 59 mil hectares de plantações de cana-de-açúcar em São Paulo foram destruídos por incêndios, gerando prejuízos superiores a R$ 1 bilhão. As autoridades suspeitam que o PCC tenha orquestrado os incêndios criminosos como retaliação a medidas governamentais que visavam o combate ao comércio de combustível adulterado.
Em fevereiro de 2025, autoridades no Rio de Janeiro revelaram que operadores de uma rede ilegal de jogo do bicho também estavam financiando a extração criminosa de petróleo de dutos subterrâneos. Os lucros do esquema eram usados para adquirir equipamentos, alugar veículos para transporte de combustível e pagamento de pessoal envolvido na operação.
O setor de biocombustíveis também foi manchado por práticas ilícitas, principalmente trabalhistas e infiltração de grupos criminosos. Em 2022, por exemplo, inspeções federais encontraram condições análogas à escravidão entre trabalhadores em plantações de cana-de-açúcar que abasteciam grandes produtores de etanol. Os trabalhadores eram submetidos a condições deploráveis, incluindo moradias inadequadas, longas jornadas de deslocamento e descanso reduzido. Tal exploração viola direitos humanos fundamentais e compromete a credibilidade da sustentabilidade da indústria de biocombustíveis no Brasil. Ao mesmo tempo, facções criminosas como o Comando Vermelho (CV) infiltraram-se na produção de palma em estados como o Pará, aumentando a exposição desta cadeia de suprimentos.
A proliferação de postos ilegais e a distribuição de combustível adulterado colocam em risco a segurança pública e minam a confiança do consumidor. As receitas substanciais geradas por essas atividades também fortalecem organizações criminosas, permitindo-lhes expandir sua influência e perpetuar ciclos de violência e corrupção.
A longo prazo, a queda na arrecadação de impostos pode prejudicar os investimentos públicos em serviços essenciais e infraestrutura, agravando as disparidades sociais e econômicas locais. Vale destacar que a adulteração de combustíveis é generalizada, e não exclusiva do crime organizado. Devido aos altos preços do biodiesel, muitos distribuidores vendem o produto com uma mistura abaixo do exigido entre biodiesel e diesel fóssil.
Prevenir e desarticular a infiltração do crime organizado no setor de combustíveis é um desafio. Processos judiciais se arrastam por anos, permitindo que operações ilícitas continuem em atividade. Os esforços dos distribuidores para encerrar contratos de franquia com operadores não conformes frequentemente esbarram em longas disputas judiciais.
A sofisticação e adaptabilidade das organizações criminosas brasileiras também dificultam a fiscalização. A mescla de atividades ilícitas com operações empresariais legítimas torna particularmente difícil para as autoridades distinguirem empresas legais daquelas que adotam práticas ilegais.
Para fazer frente a esse cenário, os governos federal e estaduais precisam ter capacidade básica para rastrear postos e dutos implicados em crimes. É fundamental fortalecer os marcos regulatórios e aprimorar os mecanismos de fiscalização. Tecnologias de rastreamento avançadas que aumentem a transparência na cadeia de suprimentos de combustíveis podem dificultar a entrada de produtos adulterados ou roubados no mercado. No entanto, isso exige o compartilhamento de inteligência e boas práticas entre jurisdições, o que possui desafios práticos bastante elevados. Uma resposta promissora vem do Instituto Nacional de Metrologia (Inmetro), que ampliou suas inspeções em bombas de combustível e na qualidade dos produtos.
Diante das ameaças crescentes em toda a cadeia de suprimentos de combustíveis fósseis e biocombustíveis no Brasil, empresas como a Petrobras também reforçaram suas medidas de segurança para proteger dutos, refinarias, sistemas de transporte e postos. Sistemas de vigilância avançados, incluindo drones e sensores, estão sendo usados por sua subsidiária, a Transpetro, para monitorar a integridade dos dutos. Equipes de resposta especializadas também foram criadas para detectar e conter ligações clandestinas.
A Petrobras e a Transpetro ampliaram a colaboração com forças de segurança estaduais e federais para combater células do crime organizado envolvidas em roubo e tráfico de combustíveis. Em áreas de alto risco, especialmente próximas a grandes refinarias como a de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, operações conjuntas com as forças policiais resultaram em prisões e apreensões de equipamentos ilegais usados por quadrilhas para perfurar os dutos. A Petrobras investiu em mecanismos internos de conformidade, auditoria e rastreabilidade de combustíveis para acompanhar melhor o movimento dos produtos e evitar ameaças internas e desvios para o mercado ilícito. A empresa também firmou parcerias com agências reguladoras, como a ANP, para reforçar a fiscalização de postos de combustíveis e transportadoras suspeitas de facilitar a revenda de combustível adulterado ou roubado.
A longo prazo, são necessárias legislações e regulamentações que aumentem as penas para crimes deste ecossistema. Reformas legais, incluindo um novo projeto de lei aprovado em abril de 2025, miram empresas que sistematicamente sonegam impostos. Outro projeto em discussão obrigaria o envio eletrônico em tempo real de dados de vendas e armazenamento de combustíveis à ANP, com o objetivo de aumentar a rastreabilidade.
Uma nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a relação entre o crime organizado e o setor de combustíveis também está em discussão. Além disso, a Polícia Federal, em conjunto com o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e autoridades fiscais, prepara uma investigação amplasobre essas atividades.
No fim das contas, a infiltração do crime organizado nos setores de combustíveis fósseis e biocombustíveis do Brasil representa uma ameaça não apenas à segurança pública, mas também às instituições democráticas. As vastas receitas ilícitas geradas por meio de roubo de combustíveis, evasão fiscal e exploração trabalhista permitem que redes criminosas ampliem sua influência nos sistemas político, judiciário e regulatório. Isso enfraquece o Estado de Direito, distorce mercados e corrói a confiança pública. Enfrentar esse problema exige mais do que ações pontuais de repressão — requer uma estratégia nacional coordenada com apoio da cooperação internacional.
Cadeias de suprimentos transparentes, fiscalização eficaz, reguladores fortalecidos e proteção aos trabalhadores são essenciais. Sem uma ação urgente e sustentada, o crime organizado continuará drenando o futuro do Brasil, enfraquecendo um de seus setores mais estratégicos.