Alice segue o coelho branco e cai na toca, sem saber o que a espera no fim daquele abismo. Essa imagem se tornou um símbolo universal: a curiosidade que leva além do bom senso, o impulso de quem ousa olhar para o desconhecido. No século XIX, quando Lewis Carroll escreveu Alice no País das Maravilhas, o mundo também caía em sua própria toca. Grandes avanços científicos geraram a Revolução Industrial que transformaria a própria ciência e também a sociedade. A máquina começava a disputar espaço com o pensamento humano.
Entre a razão e o absurdo
Lewis Carroll — pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson — foi, antes de escritor, professor de matemática na Inglaterra vitoriana. Sua obra Alice no País das Maravilhas está repleta de elementos matemáticos camuflados por jogos de palavras e situações absurdas.
A queda interminável de Alice pela toca do coelho evoca o conceito de limite chave do cálculo diferencial, enquanto as mudanças abruptas de tamanho e forma que a protagonista experimenta evocam incongruências de proporcionalidade e escala, não presentes na geometria clássica. Alice também recita tabelas de multiplicação impossíveis (“quatro por seis é treze”) que só fazem sentido em sistemas de numeração não decimais.
O século XIX foi um período de avanços matemáticos fundamentais com a criação da geometria não euclidiana de Nikolai Lobachevsky e Farkas Bolyai, o desenvolvimento da álgebra abstrata e a teoria dos conjuntos infinitos de Cantor. Além disso, o cálculo diferencial foi sistematizado graças a matemáticos como Cauchy, Riemann e Weierstrass, e conceitos-chave como a álgebra de Boole foram introduzidos. Esses avanços marcaram um antes e um depois, separaram a matemática da intuição física e estabeleceram as bases para a disciplina moderna.
Nesse contexto, a história de Alice é um exercício literário e matemático em que as regras podem mudar sem aviso prévio, imitando o processo de descoberta: avançar por um caminho incerto, onde cada novo passo obriga a repensar as suposições anteriores. Melanie Bayley, em sua análise para a revista New Scientist, argumenta que Carroll não estava apenas brincando com paradoxos: ele lançava uma crítica velada à “modernidade matemática” que, para muitos, era tão inquietante quanto a Rainha de Copas gritando “Que cortem sua cabeça!”.
A crítica não era trivial. Como aceitar que um conceito abstrato pudesse ter aplicações reais? Como confiar em geometrias que negavam a intuição do espaço? Carroll transformou magistralmente essa tensão em literatura: o absurdo do País das Maravilhas refletia a perplexidade diante de uma ciência que parecia perder o terreno firme da lógica clássica.
Números imaginários e quatérnios
Durante séculos, os matemáticos acreditaram que um número negativo não podia ter raiz quadrada. Durante o Renascimento, matemáticos italianos como Rafael Bombelli propuseram as raízes quadradas de números negativos na resolução de equações cúbicas, embora por muito tempo a ideia tenha sido vista com ceticismo, pois parecia contradizer as regras da natureza.
No final do século XVIII e início do século XIX, a unidade imaginária, i, foi definida por Leonhard Euler e formalizada por Carl Friedrich Gauss como a raiz quadrada de -1. Isso permitiu ampliar o campo numérico e trabalhar com os chamados números complexos ou imaginários. Embora o próprio Gauss tenha expressado certas dúvidas em seus escritos do final do século XVIII, seu tratado posterior sobre números complexos estabeleceu em grande parte a notação e a terminologia modernas.
Em 1843, William Rowan Hamilton, buscando estender os números complexos a um número maior de dimensões, introduziu alguns objetos matemáticos que descrevem as rotações em um espaço tridimensional: os quatérnios. Voltando a Alice: na festa do chá do Chapeleiro Maluco, falta um convidado, o Tempo, então eles passam o resto do dia girando e girando. Esta passagem é uma paródia sobre as propriedades dos quatérnios.
Os números imaginários e os quatérnios abriram as portas para campos que seriam fundamentais para o avanço tecnológico dos séculos XX e XXI, como a física quântica, a engenharia elétrica e o controle de sistemas.
Trata-se de um padrão que se repete ao longo da história: todo avanço matemático que implicou uma mudança de perspectiva gerou resistência, mas acabou revelando sua utilidade em avanços tecnológicos e sociais disruptivos. Carroll expressou isso de forma poética: “quem deixa de se questionar, deixa de crescer”. A história mostra que a curiosidade — aquela centelha que levou Alice a seguir o coelho — é tanto a semente do progresso quanto da incerteza.
Do outro lado do espelho: a inteligência artificial
Através do espelho, a segunda parte das aventuras de Alice, coloca a protagonista do outro lado de uma superfície aparentemente sólida para entrar em um mundo onde as regras se invertem. Hoje, a tecnologia nos confronta com uma experiência semelhante.
A inteligência artificial (IA) é talvez o espelho mais inquietante de todos. Ela nasceu do desejo de entender como o ser humano pensa, mas começa a desenvolver lógicas próprias. Modelos capazes de aprender, criar imagens ou redigir textos se multiplicam com uma rapidez que poucos imaginavam. O espanto inicial deu lugar à incerteza: o que veremos quando o espelho nos devolver uma imagem mais persuasiva do que a própria realidade?
Nesse jogo especular, as questões filosóficas e éticas retornam com a força dos paradoxos de Carroll. Se uma máquina pode escrever um poema convincente ou resolver um teorema, onde começa e termina a criatividade humana? Seguimos o coelho branco por curiosidade ou porque o algoritmo nos leva a fazê-lo?
Porque, como diria o Gato de Cheshire: “Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho o levará lá”. E na ciência, esse caminho geralmente começa com uma queda livre… em direção ao futuro.
