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A “Matéria Escura” da biodiversidade: por que certas espécies vegetais não retornam ao ambiente mesmo após o reflorestamento

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A “Matéria Escura” da biodiversidade: por que certas espécies vegetais não retornam ao ambiente mesmo após o reflorestamento

A restauração ecológica é uma atividade fundamental em tempos de crise climática e desmatamento. Mas ela, sozinha, não é capaz de devolver toda a biodiversidade de uma área degradada.

Essa constatação é relativamente nova, e podemos começar a explicá-la com um exemplo bem documentado cientificamente: em um reflorestamento iniciado em 2001 numa área onde originalmente havia Mata Atlântica, no norte do Paraná, foram plantadas mudas de 45 espécies de árvores nativas. E no ano passado, 23 anos depois, encontramos no local 35 outras espécies de árvores, que colonizaram a área de forma espontânea, sem qualquer influência do reflorestamento.

Levantamentos mostram que a diversidade de árvores naquela região de Mata Atlântica do norte do Paraná ultrapassa 300 espécies. E, num pequeno fragmento de Mata Atlântica, mesmo degradado como o objeto do estudo acima, a biodiversidade local é capaz de oferecer mais de 100 espécies de árvores.

Esses achados científicos relativizam uma ideia até recentemente muito difundida entre cientistas e restauradores de que, se recriamos a estrutura de uma vegetação, as espécies que não conseguimos manipular brotarão espontaneamente. Definitivamente, isso não acontece com todas as espécies.

Se um vegetal preenche todos os requisitos para chegar e crescer, mas não surge no ecossistema em restauração, ele pode fazer parte do que chamamos de “diversidade escura”, ou seja, a chamada “matéria escura” da biodiversidade. A expressão vem do inglês “dark matter”, termo consagrado na cosmologia para definir uma forma de matéria que não interage com a matéria comum, nem consigo mesma.

Na biologia, quando criamos um “reflorestamento” ou uma “área restaurada”, ambos podem demorar bastante e até mesmo jamais ficarem parecidos com a vegetação “madura” original, aquela sem tantos sinais de atividade humana. Um dos motivos para isso é que algumas espécies não virão se juntar às que foram plantadas, mesmo que estejam ali por perto. Estas espécies formam a matéria escura da biodiversidade, objeto de nossos estudos: um grupo heterogêneo de organismos que não sabemos ao certo por que estão confinados aos remanescentes de um habitat natural.

Reflorestamento com espécies nativas de uma área anteriormente usada para agricultura de grãos. O plantio foi iniciado em 2003 e as árvores de maior porte ainda são resultantes das mudas plantadas, mas o estrato inferior já está colonizado por espécies nativas que chegaram espontaneamente. Imagem cedida pelos autores

Ecologia da restauração

A restauração ecológica vem cumprindo diversos papéis ao redor do mundo. A Década da Restauração da ONU, por exemplo, propõe restaurar para combater as mudanças climáticas e prevenir extinções em massa. Técnicas são desenvolvidas por meio de um ramo da ciência ecológica, a Ecologia da Restauração. Nela, como em outros ramos da ecologia, o laboratório dos cientistas se faz em campo, e os projetos de restauração viram um grande experimento.

A ecologia aplicada à restauração é fundamental no contexto em que vivemos, em que as paisagens se encontram altamente fragmentadas – basta olhar para a Mata Atlântica, por exemplo, onde só sobraram pedaços de habitat natural. Em consequência disto, intervenções mais intensas, chamadas de “restauração ativa”, são necessárias para iniciar ou acelerar a recuperação do ecossistema.

A restauração ativa, feita pelo plantio de mudas ou sementes, deve ser criteriosa e com objetivos bem claros, mas não consegue ir muito além de criar as condições necessárias para que o ecossistema comece a se recuperar – um caminho que pode durar décadas ou até séculos, e que foge, em grande parte, do nosso controle.

E mesmo a mais cara e mais intervencionista das restaurações não faz o trabalho todo. Conseguimos recuperar o solo, recriar muito do microclima de uma floresta, estocar carbono e alimentar animais. Plantamos dezenas de espécies, geralmente árvores, e nosso trabalho garante condições para o retorno de várias outras – como plantas que não são árvores, insetos e aves. Mas algumas espécies não voltarão a habitar esses espaços.

Não basta chegar, é preciso sobreviver

Num sistema ecológico em restauração, processos naturais estão sendo restabelecidos, e entre os mais importantes está a dispersão de sementes, em que o vento e animais trazem sementes de espécies que não conseguimos manipular, por alguma razão.

A distância de dispersão das sementes varia bastante entre as espécies, e também depende do ambiente: o vento funciona bem em áreas abertas, mas dentro das florestas os animais são imbatíveis. Em áreas em restauração muito distantes de manchas de habitat natural, as sementes de algumas plantas não chegarão. Esta preocupação pode ser estendida a pequenos animais e microrganismos.

Além disso, não basta chegar, é preciso sobreviver, já que a germinação das sementes e o crescimento das plantas jovens é que vão garantir a continuidade natural da restauração. Sabemos que isso depende, além da chegada das sementes, do microclima (umidade e temperatura dentro da floresta) e de interações com microrganismos e com animais, e isso pode ser bastante restritivo.

Incluindo mais espécies

Essas limitações da restauração podem ser mitigadas, em parte, aumentando a eficiência da coleta de sementes e da produção de mudas. Das espécies mais comuns, é mais fácil coletar e fazer germinar sementes, mas de muitas espécies não há informações disponíveis sobre como lidar com as sementes e produzir as mudas.

É claro que são necessários investimentos em pesquisa e na formação de profissionais capacitados para aperfeiçoar estas técnicas, mas não é razoável esperar que isto resolva totalmente o problema, simplesmente porque ecossistemas como a Mata Atlântica têm espécies demais.

Se numa área pouco maior que um campo de futebol pode haver 100 espécies só de árvores, o número pode se aproximar de 1.000 se incluirmos ervas, arbustos, cipós, samambaias e outras plantas menos conhecidas.

Um reflorestamento com espécies nativas considerado “de alta diversidade” pode ser feito usando mudas de 80 espécies; a maior parte não usa sequer metade disso.

Nenhuma área degradada é uma ilha

Outra estratégia promissora, mas pouco utilizada, é intervir na paisagem toda (e não apenas num local degradado) para facilitar a dispersão dos organismos nativos. Quando transformamos as paisagens, reduzindo os ambientes naturais a fragmentos separados por grandes áreas agrícolas e pastoris, dificultamos a dispersão natural de sementes e outros organismos, talvez criando, nós mesmos, parte da “diversidade escura”.

Uma forma de mitigar este problema, que encontra apoio em ciência já bem estabelecida, é selecionar as áreas para restauração de forma que sirvam de conexão entre manchas de habitat natural remanescentes, criando os “corredores ecológicos”. Em geral, esse planejamento da paisagem encontra algum suporte na legislação ambiental (por exemplo, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa ou a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação), mas depende fortemente da adesão voluntária de proprietários de terra.

Mesmo com sementes e mudas introduzidas e organismos chegando naturalmente, há evidências de que nem toda a biodiversidade será beneficiada pela restauração. Mudanças climáticas, paisagens transformadas, perda de interações entre as espécies, entre outros motivos, sugerem que parte das espécies continuará confinada nos remanescentes de habitat natural, ou será extinta.

Portanto, ainda que seja imprescindível restaurar, a medida mais urgente do ponto de vista da biodiversidade é eliminar o desmatamento e proteger os remanescentes de habitat natural. Admitindo que não conseguimos imitar perfeitamente os processos naturais, preservar sempre será melhor do que restaurar.

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