O dia 13 de outubro de 2025 foi anunciado como o começo de uma nova fase no Oriente Médio. Donald Trump, Abdelfatá al-Sisi, Recep Tayyip Erdogan e o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, assinaram em Sharm el-Sheikh, Egito, uma declaração de paz para Gaza. A cerimônia contou com cerca de vinte líderes internacionais e transformou a cidade egípcia em palco de discursos sobre reconciliação e prosperidade, embora as partes diretamente envolvidas no conflito estivessem ausentes.
Nem Israel nem o movimento islamista Hamas compareceram na cerimonia de assinatura do documento. Netanyahu recusou participar, alegando proximidade com a festividade de Simjat Torá, enquanto o Hamás rejeitou cláusulas ligadas à desmilitarização total. O resultado foi um acordo sustentado por mediadores — Estados Unidos, Egito, Catar e Turquia — com autoridade diplomática, mas sem legitimidade política real nos territórios afetados.
Junta de paz com presiência simbólica de Trump
O texto institui uma Junta Internacional de Paz com presidência simbólica de Trump e direção executiva sob o ex primeiro-ministro britânico Tony Blair, encarregada de coordenar reconstrução e mediação entre doadores e projetistas. Essa estrutura administrativa evita a representação direta dos palestinos e aproxima Gaza de um regime de administração internacional sem consentimento pleno. No plano jurídico, falta respaldo na legislação internacional contemporânea para um ente híbrido exercer autoridade civil permanente em território ocupado sem mandato explícito do Conselho de Segurança da ONU.
O arranjo não apresenta mecanismos claros de responsabilização. Crimes ocorridos durante o conflito ficam vulneráveis à ausência de investigações independentes, e o acordo não menciona tribunais internacionais ou comissões de verdade. A Palestina aderiu ao Estatuto de Roma em 2 de janeiro de 2015, aceitando a jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) para crimes cometidos em seu território, mas não tem capacidade real para otimizar suas reclamações motu proprio.
Mesmo assim, o texto de Sharm el-Sheikh não faz referência explícita ao TPI. Em 21 de novembro de 2024, a Câmara Prévia I (Pre-Trial Chamber I) desse alto tribunal rejeitou objeções israelenses a sua jurisdição e emitiu mandados de prisão para Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, por crimes de guerra e crimes contra a humanidade no contexto da guerra em Gaza. A propósito, Israel não reconhece a competência do TPI para seus cidadãos. De fato,o país contesta sua jurisdição. Esse impasse legal fragiliza o peso jurídico e moral do pacto: ele proclama o fim da guerra, mas omite enfrentar as violações centrais que a definiram.
A execução do plano começou com o intercâmbio de reféns e prisioneiros. O Hamas libertou os vinte últimos israelenses vivos e entregou à Cruz Vermelha quatro caixões com os restos mortais dos que morreram em cativeiro, embora mais de 20 corpos ainda permaneçam não localizados. Israel, por sua vez, liberou cerca de 1.968 prisioneiros palestinos. Alguns desses liberados foram transferidos para Ramallah, na Cisjordânia, em vez de permanecerem em Gaza. Outros foram enviados ao Egito.
As imagens de reencontros emocionados foram amplamente divulgadas, mas a trégua segue na esfera diplomática, não jurídica. O cessar-fogo decorre de acordos políticos, sem autoridade verificadora internacional credível, e sem mandato coercitivo formal. Sem missão de monitoramento aprovada pela ONU, o armistício está submetido à condição frágil da colaboração voluntária.
Violações no dia seguinte ao acordo
Apesar do cessar-fogo formal, novas violações ocorreram ao longo do dia seguinte (14 de outubro). Autoridades locais relataram que pelo menos cinco palestinos foram mortos por tropas israelenses no bairro de Shujayea, em Gaza, sob a alegação de que se aproximaram excessivamente das posições militares. O Exército israelense reconheceu ter efetuado disparos contra “suspeitos” que teriam ultrapassado a chamada “linha amarela” de retração definida no acordo de cessação das hostilidades. Por outro lado, relatos oficiais confirmam também que o Hamás executou 32 membros de um “gangue” em Gaza como parte de uma operação de segurança após o cessar-fogo, com o objetivo declarado de controlar grupos rivais.
O fundo internacional de reconstrução, anunciado com entusiasmo, reforça a dependência econômica do território. Países árabes ricos declararam interesse em financiar projetos, mas sem compromissos concretos. A União Europeia, ainda enfrascada com o conflito em Ucrania, prometeu principalmente apoio técnico, e o FMI limitou-se a avaliar a iniciativa como “oportunidade regional”. Sem cláusulas de execução obrigatória, as promessas de reconstrução permanecem sujeitas a mudanças políticas e a crises financeiras externas. A lentidão na chegada de recursos ameaça reproduzir o cenário do pós-guerra iraquiano: reconstruções parciais, corrupção e frustração popular.
Para Donald Trump, o acordo simboliza um triunfo pessoal. Diante do Parlamento israelense, declarou que “começa a era dourada de Israel e do Oriente Médio”, apresentando-se como arquiteto da paz. A estratégia tem também dimensão eleitoral. A aproximação com Benjamin Netanyahu, mesmo diante de processos abertos por corrupção e abuso de autoridade, fortalece sua base conservadora nos Estados Unidos.
O pedido público de Trump ao presidente israelense Isaac Herzog para que conceda perdão antecipado a Netanyahu expõe a instrumentalização política do direito de clemência. A legislação israelense reconhece ao chefe de Estado o poder de conceder perdão, mas a prática costuma restringir-se a casos em que há condenação transitada em julgado. A jurisprudência do caso Barzilai vs. Governo de Israel reforça que o perdão presidencial não deve interferir em processos judiciais em curso. Como Netanyahu ainda responde a três ações penais — conhecidas como casos 1000, 2000 e 4000 —, qualquer indulto prévio configuraria uma exceção controversa, juridicamente vulnerável e politicamente explosiva. Essa ambiguidade transforma o gesto de Trump em ato simbólico de lealdade, mais voltado à retórica eleitoral do que à legalidade institucional.
Os motivos do provável fracasso do plano combinam dimensões jurídicas, políticas e materiais. Embora o acordo contenha cláusulas que exigem a desmilitarização da Faixa de Gaza, o movimento Hamás declarou que “a arma da resistência não é negociável” e se recusa a abrir mão de seu arsenal enquanto não houver um Estado palestino plenamente independente.
O documento, assinado por mediadores — Estados Unidos, Egito, Catar e Turquia — sem a participação formal de Israel nem do Hamás, revela ausência de legitimidade interna. A desmilitarização prevista não decorreu de consenso recíproco e se sustenta por imposição externa, o que fragiliza sua validade normativa.
A administração internacional proposta para Gaza carece de mandato do Conselho de Segurança da ONU, criando um limbo jurídico. O fundo de reconstrução depende de doadores voluntários, sem mecanismos jurídicos de execução. A omissão de disposições de responsabilização por violações de guerra elimina incentivos ao cumprimento. Persistem ainda divergências sobre fronteiras, circulação de bens e segurança. Assim, o plano apoia-se menos em acordo de paz vinculante e mais em intenções diplomáticas frágeis, sem bases jurídicas sólidas.
Devastação permanece
Gaza segue devastada. Cento e setenta e cinco mil edifícios (aproximadamente 92% de todas as edificações) permanecem em ruínas e ao menos um milhão e meio de pessoas continuam deslocadas. A cada dia em que a reconstrução não avança, a trégua perde legitimidade. O Hamás mantém presença armada e executa adversários internos para reafirmar autoridade. Israel, por sua vez, mantém controle parcial de fronteiras e bombardeios esporádicos. O cessar-fogo diminuiu a violência, mas não encerrou a guerra.
O plano de Sharm el-Sheikh oferece ao mundo uma narrativa de paz construída à distância e baseada em promessas externas. Sem respaldo jurídico sólido, sem legitimidade social e sem mecanismos de controle, a trégua tende a transformar-se em intervalo entre conflitos. Na diplomacia internacional, há acordos que duram minutos e derrotas que atravessam gerações. Esta parece ser uma dessas derrotas disfarçadas de vitória: uma paz sem raízes, destinada a terminar antes de florescer.