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A propósito das evidências para a qualidade da educação no Brasil

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A propósito das evidências para a qualidade da educação no Brasil

Na gestão da política educacional no Brasil e no exterior, tem sido corriqueira a utilização da expressão “política baseada em evidências”. À falta de evidências, muitas vezes reduzidas a dados estatísticos, estaria legitimada uma vitória da pesquisa aplicada frente a discursos “ideológicos”, antipragmáticos e “tão-somente” teóricos. Não raro tachados de “meramente acadêmicos”.

Tal concepção perpassa salas de aula, universidades, organizações públicas e privadas e organismos internacionais, contribuindo para sustentar o discurso sobre a suposta baixa qualidade da educação brasileira.

Um exemplo clássico da disseminação desse discurso são as matérias jornalísticas pautadas pela divulgação de resultados das avaliações em larga escala de desempenho estudantil, como é o caso do trienal PISA, com conclusões as mais díspares possíveis.

Sobre o PISA de 2022 no Brasil, um jornal enfatizou que “o problema está na escola pública”. A reportagem reforça o argumento de que a média nacional foi impactada negativamente pelo desempenho das escolas públicas, obscurecendo os “excelentes” resultados das instituições privadas. Esse tipo de análise, contudo, desconsidera fatores estruturais e metodológicos fundamentais para uma compreensão do cenário educacional.

Vulnerabilidades sociais

O desempenho escolar é fortemente correlacionado ao nível socioeconômico (NSE) dos estudantes. Estudos demonstram que alunos de NSE mais alto tendem a obter melhores resultados devido a fatores extrínsecos, como acesso a recursos educacionais, ambiente familiar favorável à aprendizagem e menor exposição a vulnerabilidades sociais (conforme diretrizes do Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas do Inep, de 2013). Dessa forma, afirmar que “o problema está na escola pública” sem considerar essa variável é, no mínimo, impreciso.

Ao analisarmos o desempenho médio em Matemática dos estudantes de 15 anos no PISA 2022 com base no índice de nível socioeconômico da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), observamos que apenas 4% dos jovens brasileiros são classificados como top performers, enquanto 12% encontram-se no grupo de menor desempenho em nível internacional. Essa distribuição revela não apenas disparidades internas, mas também a posição do Brasil no contexto global.

Se isolarmos os estudantes dos dois decis superiores do nível socioeconômico (os 20% mais favorecidos) – que representam, em grande parte, aqueles matriculados em escolas privadas – encontramos um desempenho médio entre 440 e 480 pontos em Matemática.

A escala de proficiência não possui nota máxima fixa, mas na qual o nível mais alto de desempenho – top performers – começa em 669 pontos e a média dos países da OCDE foi de 472. Ou seja, mesmo os alunos brasileiros mais favorecidos, presumivelmente beneficiados pelo ensino privado, apresentam resultados inferiores aos de estudantes de nível socioeconômico muito mais baixo em países como Irlanda, Letônia, Polônia e Turquia.

A mística da escola privada

Se, por um lado, esses dados desmistificam a noção de que a escola privada brasileira seria um modelo de excelência, por outro, mostram como a estatística pode ser usada seletivamente para reforçar argumentos previamente estabelecidos.

Atribuir à escola pública a responsabilidade exclusiva pelo desempenho educacional nubla uma questão essencial: como estaria a educação brasileira sem a escola pública? Que objetivos intangíveis, não necessariamente instrucionais, são atingidos pela escola pública? O quanto esses objetivos são invisíveis às métricas e evidências estatísticas?

Há muito as pesquisas em Educação, no Brasil e no exterior, apontam para os limites do PISA na medida da qualidade educacional e como guia das políticas públicas.

Nos discursos favoráveis à recente reforma curricular do ensino médio no país, houve um padrão seletivo de utilização de evidências. Estas foram empregadas mais para corroborar e operacionalizar escolhas políticas preexistentes do que para submetê-las ao debate.

As medidas provisórias urgentes

Para nós, pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um bom exemplo foi a Exposição de Motivos nº 00084/2016/MEC que deu base à solicitação do Ministério da Educação, em regime de urgência, a uma Medida Provisória para reformar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), no que tange ao ensino médio no país.

Segundo o documento, era inadiável uma reforma curricular para fazer frente aos gargalos que derrubavam o desempenho e permanência dos jovens nesta etapa de ensino. Confrontemos alguns dados levantados no documento:

Questiona-se: a partir de quantas disciplinas um currículo passa a ser extenso? Quem define a extensão e em que base? Uma vez extenso, o que deveria ficar de fora?

Questiona-se: se o modelo prima pela liberdade de escolha, por que vincular aos projetos de vida? Essa “liberdade de escolha” é uma possibilidade, considerando-se a infraestrutura desigual das escolas brasileiras?

Disciplinas obrigatórias e não obrigatórias

O Brasil não é o único país do mundo a ter 13 disciplinas obrigatórias. O Chile, por exemplo, considerado pelas estatísticas como um dos melhores resultados educacionais na América Latina, tem tantas disciplinas quanto o Brasil.

Em segundo lugar, os países que possuem poucas disciplinas obrigatórias não convergem sobre o que é obrigatório: de Filosofia e Música a Matemática e História, não há consenso sobre quais seriam as “habilidades essenciais indispensáveis”.

E por último, ter matérias obrigatórias pode ser tão frustrante para o jovem quanto ter a obrigação de optar por disciplinas que não lhe interessam.

Se a atratividade da escola está na possibilidade de escolha de disciplinas pelo jovem, como lidar com a situação em que quase 50% dos municípios do país possuíam apenas uma instituição que oferecia ensino médio em 2022? Seria isso inverter a frustração curricular daquilo que a escola oferece pela frustração do que a escola não oferece?

Se currículos supostos como ruins porque excessivos são a causa de fluxos escolares irregulares, baixa proficiência, desidentificação com a escola e o não avanço para o ensino superior, por que, com o mesmo currículo, há tanta disparidade nos indicadores da população jovem quando se considera seus níveis socioeconômicos? Por que, na formulação de políticas curriculares, tenta-se apagar as diferenças entre os múltiplos contextos educacionais, as singularidades dos sujeitos na escola, em nome de uma formulação suposta como melhor para qualquer situação?

A reforma ilustra esse apagamento de contextos e o uso estratégico de evidências. O discurso da “urgência” e da “crise”, com dados de evasão e desempenho no PISA e no Sistema de Avaliação da Educação Básica, Brasil (Saeb), foi mobilizado para justificar uma mudança curricular profunda via Medida Provisória. Este procedimento, por si só, limitou o debate democrático sobre o currículo no país.

O que os dados estatísticos nos dizem e nos suprimem?

Chega-se à pergunta síntese: os dados foram a base evidencial para a necessidade de reforma curricular ou o desejo por reforma foi a base a priori para o emprego de evidências?

Dados estatísticos nos oferecem tanto respostas quanto interrogações. Aberturas e fechamentos refletem relações de poder, de modo que as “evidências” não são tão evidentes assim. Isso nos leva a uma aporia: ao nos revelar, o que os dados estatísticos nos suprimem? Fazer essa indagação não é cair no simplismo de culpar números que buscam representar a realidade, mas reforçar que a tentativa de leitura da realidade tende a um grau de incerteza, de aposta, que (apenas) atravessa os números. Ler os números é traduzi-los; e traduzir é trair o texto original.

O intuito aqui não é a acurácia estatística. Há hipóteses ou estimativas propositalmente questionáveis. Buscamos apenas sinalizar que se basear em evidências numéricas não significa, necessariamente, tornar os problemas sociais mais evidentes, mas dar evidência a determinadas leituras do social e nublar outras leituras.

A reflexão serve para tornar evidente a necessidade de agitar sedimentações, abrir espaço a evidências que estão para além do cálculo. Apostamos na busca, sem garantias, de que os dados nos deem algo a mais e não nos tirem possibilidades contingentes de sentido.

As ideias teóricas refletidas neste texto são aprofundadas em um artigo científico publicado no periódico Education Policy Analysis Archives, da Universidade do Estado do Arizona.


A publicação deste artigo contou com o apoio da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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