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A Turquia celebra 2025 como o ‘ano da família’, mesmo enquanto os lares enfrentam uma inflação de dois dígitos

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A Turquia celebra 2025 como o ‘ano da família’, mesmo enquanto os lares enfrentam uma inflação de dois dígitos

Imagem: Arzu Geybullayeva

Foi após a reunião de gabinete de 6 de janeiro de 2025 que o presidente da Turquia,  Recep Tayyip Erdoğan, de 70 anos, declarou o ano novo como o “Ano da Família” (Putin fez isso pela primeira vez em 2024). A intenção do presidente ao fazê-lo resulta do declínio da taxa de natalidade do país que, segundo o mandatário, é umaameaça existencial à Turquia“. Uma semana depois, em 13 de janeiro, o presidente Erdoğan voltou à discussão, incentivando as famílias a terem pelo menos três filhos – um apelo que ele já fez  anteriormente sob o mantra: “Uma criança significa solidão, duas significa rivalidade, três significa equilíbrio e quatro significa abundância”.

A taxa de natalidade recorde mais baixa de 1,51 (comparada com a de 2001, que foi 2,38) foi registrada e anunciada pela primeira vez em 2023. Esta cifra é  significativamente inferior a 2,1, considerada o limiar necessário para que uma população mantenha o equilíbrio sem diminuir, conforme os dados da OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento).

Erdoğan também anunciou uma série de incentivos financeiros para estimular as famílias, como um pagamento único de 5.000 liras turcas (141 dólares) para o primogênito, uma ajuda mensal de 1.500 liras (42 dólares) para o segundo, 6.500 liras mensais (182 dólares) para o terceiro e 11.500 liras mensais ( 323 dólares) para o quarto filho. Além disso, concederá empréstimos a juros baixos para recém-casados. Os novos incentivos aplicam-se apenas a crianças nascidas a partir de 1º de janeiro de 2025. Assim, se uma família já tiver dois filhos antes deste anúncio, só terá direito à ajuda estatal mensal de 5.000 liras quando o terceiro filho nascer a partir desta data. Estes incentivos estarão disponíveis até a criança completar cinco anos. Não há menção de quaisquer incentivos para apoiar a família numa fase posterior.

Em janeiro de 2025, o salário mínimo da Turquia é 22.104 liras (620 dólares). Em um país marcado pelo custo de vida crescente, os estímulos financeiros por criança oferecidos pelo governo atual são insuficientes frente aos custos de vida diários. Como resultado, a reação ao plano do “Ano da Família” foi estrondosa e contundente.

“Em meio a uma crise econômica cada vez mais profunda e a crescente dificuldade  para satisfazer as necessidades básicas, enfatizar que as famílias deveriam ter três filhos, por meio de gestos simbólicos como este, não leva em conta as dificuldades da sociedade”, disse Aylin Nazlıaka, vice-presidente do principal partido da oposição, o Partido Popular Republicano (CHP), cuja sua pasta inclui a supervisão das políticas do Ministério da Família e dos Serviços Sociais, em entrevista ao TurkeyRecap.

“A taxa de inflação para quem ganha salário mínimo é de 80%, e mesmo com a taxa de inflação oficial sendo de 47%, milhões de pessoas que ganham salário mínimo são aniquiladas pela inflação”, disse o líder do CHP, Özgur Özel. Özel se referiu a duas taxas diferentes de inflação, uma relatada pelo Estado, que fixou a inflação em 47,9% em novembro de 2024 e outra por um Grupo Independente de Pesquisa da Inflação na Turquia [ENAG], que a definiu em 86,76% para o mesmo mês. Em 3 de janeiro de 2025, o Estado anunciou que a taxa de inflação era 44,38%, enquanto a ENAG afirmava que era 83,40%.

Ao escrever em sua conta no X, o prefeito de Istambul, Ekrem İmamoğlu, disse: “O governo zombou oficialmente dos 9 milhões de trabalhadores com salário mínimo e suas famílias – 22.104 liras [621 dólares] não são suficientes nem para um mês de aluguel em Istambul”.

A plataforma de verificação de fatos turca Dogruluk Payi publicou uma lista de distritos de Istambul com aluguéis médios, indicando, segundo os dados, que o novo salário mínimo será insuficiente para cobrir os custos de habitação na maioria dos distritos.

De acordo com a Agência de Planejamento de Istambul, o custo de vida médio para uma família de quatro pessoas que vive em Istambul atingiu 75.717 liras (2.127 dólares), de acordo com o relatório de novembro de 2024. E, de acordo com um relatório de dezembro de 2024 da Confederação dos Sindicatos Turcos, a renda total necessária para despesas básicas com alimentos e bens por família era de 68.675 liras (1.1930 dólares).

As populações adulta e em idade ativa da Turquia não são as únicas que enfrentam a pobreza. De acordo com dois recentes estudos do grupo de reflexão da Fundação de Investigação de Política Econômica da Turquia (TEPAV), “7,03 milhões de crianças com idades entre 0 e os 17 anos vivem na pobreza, sendo que 2 milhões delas enfrentam a ‘pobreza absoluta’”.

O anúncio também não agradou aos grupos de direitos das mulheres. A Federação de Associações de Mulheres da Turquia apelou ao governo para salvaguardar os direitos das mulheres e das famílias. Numa entrevista à Agência de Notícias ANKA, Canan Güllü, presidente da federação, disse: “Parece errado enfatizar o conceito de proteção da família enquanto que os mecanismos para salvaguardar o direito das mulheres à vida são negligenciados”. A federação registou 421 feminicídios em 2024. Güllü acrescentou: “Não queremos um governo que funcione como uma agência matrimonial. O principal dever dos governos é garantir a sobrevivência, a saúde e o bem-estar dos cidadãos. Ignorar a pobreza e as violações do direito à vida quando criam-se institutos é um absurdo. Vinte ou trinta institutos poderiam ser fundados diariamente, mas o governo deve primeiro abordar as questões centrais que assolam a Turquia”.

As tentativas recentes para abordar o declínio da taxa de natalidade e o envelhecimento da população do país incluem a fundação de um  Conselho Superior de Políticas Populacionais, anunciado em Outubro de 2024 pelo Ministério da Família e dos Serviços Sociais. Em maio de 2024, o ministério lançou uma pesquisa nas cidades com as taxas de natalidade mais baixas e índices de divórcios mais altos.

Existe uma lei que restringe cesarianas e viagens transfronteiriças para casais turcos que procuram assistência reprodutiva de terceiros. O presidente, durante seus primeiros anos no poder, também criticou a contracepção e comparou o aborto ao assassinato (o aborto foi legalizado em 1983). De acordo com declarações anteriores do presidente, as mulheres também não são iguais aos homens.

Os bodes expiatórios habituais

Ao explicar as causas da diminuição da taxa de natalidade, Erdoğan não mencionou a inflação ou os desafios econômicos relacionados, mas, em vez disso, culpou o movimento LGBTQ, descrevendo-o como “perverso” e “prejudicial”. Em 13 de janeiro, ele citou: “O objetivo principal das políticas de neutralização de gênero, nas quais LGBT é usado como aríete, é a família e a santidade da instituição familiar”. O presidente também criticou as redes sociais e a forma como o seu conteúdo dirigido ao consumidor desencoraja os jovens a começar uma vida juntos. “Séries de televisão, programas e muitos conteúdos presentes nas plataformas digitais causam erosão cultural”, disse o presidente.

E, no entanto, de acordo com vários estudos e pesquisas, não são os movimentos LGBTQ+ ou as redes sociais os motivos da baixa natalidade; a inflação e os altos custos de vida, no entanto, são. De acordo com a Confederação Sindical HAK-IS, metade da população empregada do país trabalha por um salário mínimo; como tal, essa é a renda principal. Durante as reuniões de dezembro da comissão do salário mínimo, a TÜRK-İŞ (Confederação dos Sindicatos Turcos) propôs um mínimo de 29.583 (842 dólares) tendo em conta a inflação e possíveis aumentos de preços. Mas esta cifra nunca foi adotada. O aumento anterior do salário mínimo ocorreu em janeiro de 2024, o qual passou a ser 17.002 (484 dólares).

Onde ficam os incentivos financeiros e outras medidas apresentadas como parte do “Ano da Família”? Não é tão difícil dizer. Uma busca rápida por fórmula infantil e fraldas em um site de comércio eletrônico local totalizou pouco mais de 1.000 liras (28 dólares) por uma caixa de 800 gramas fórmula infantil e um pacote de 210 fraldas com desconto. Isto deixa 500 liras (14 USD) do incentivo do governo para uma família composta por dois pais e um bebê quando se calcula que uma família precisa de pelo menos 68.675 liras (dólares1.926) para sobreviver durante um mês, e isso se a inflação e os aumentos de preços permanecerem nos níveis atuais.

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