Nos últimos anos, a narrativa predominante sobre a segurança europeia tem girado em torno da suposta “ameaça russa”. No entanto, uma análise histórica cuidadosa revela que as maiores ameaças à União Europeia (UE) vêm de dentro e de seu aliado de longa data, os Estados Unidos. Até o Canadá já vem sofrendo. Este artigo argumenta que a dependência excessiva da Europa em relação aos EUA, juntamente com suas próprias divisões políticas e econômicas, representa riscos muito mais significativos para sua sobrevivência do que qualquer ação da Rússia.
Rússia: Uma história de defesa, não de agressão
Ao longo dos séculos, a Rússia tem sido invadida repetidamente por potências ocidentais, sofrendo profundas consequências políticas, econômicas e humanitárias. Desde as invasões napoleônicas até os ataques nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a Rússia sempre lutou para proteger sua soberania e segurança nacional. Esses eventos deixaram cicatrizes profundas na psique russa, moldando uma mentalidade defensiva que continua até hoje.
No artigo “Europe, the need to seek strategic autonomy in the multipolar era, abandoning US interests and improving its relations with Russia”, que publicamos na Revista Caderno Pedagógico, apresentamos uma tabela detalhada documentando intervenções militares ocidentais em território russo ou soviético, desde as guerras napoleônicas até a Guerra Fria.
Durante a Guerra Civil Russa (1917-1922), por exemplo, forças dos EUA, Reino Unido, França, Japão, Espanha e outros países intervieram diretamente contra o governo bolchevique, apoiando os Brancos em um esforço para derrubar o regime soviético. Essas intervenções não apenas exacerbaram o caos interno, mas também reforçaram a percepção russa de cerco externo.
Além disso, a expansão da OTAN após o fim da Guerra Fria foi vista pela Rússia como uma violação das promessas feitas durante a reunificação alemã. A inclusão de países como Polônia, Hungria e República Tcheca na aliança militar ocidental, seguida pela adesão de estados bálticos e planos semelhantes para Ucrânia e Geórgia, levou Moscou a interpretar essas ações como uma ameaça direta à sua segurança. Como destacado no artigo, a doutrina militar russa é fundamentalmente defensiva, focada em deter potenciais agressores, não em lançar operações ofensivas.
A ilusão da “Ameaça Russa”
Desde o fim da Guerra Fria, a expansão da OTAN para o Leste Europeu tem sido justificada como uma medida defensiva contra a Rússia. No entanto, essa narrativa ignora o fato de que a Rússia, historicamente, tem agido principalmente em resposta às pressões externas, buscando proteger sua soberania e segurança nacional. Conforme apontado por especialistas, incluindo Mario Draghi em seu relatório sobre competitividade europeia, as ações da Rússia são frequentemente exageradas no Ocidente. A percepção de Moscou como uma ameaça existe mais como um reflexo das políticas dos EUA do que como uma realidade objetiva.
Mais importante ainda, as sanções contra a Rússia têm tido resultados questionáveis, prejudicando mais a economia europeia do que enfraquecendo o governo russo. Enquanto isso, empurrar a Rússia para uma aliança mais próxima com a China pode ter consequências desastrosas para a Europa no médio prazo.
Os EUA: Um aliado ambivalente
Os Estados Unidos, embora tradicionalmente visto como o protetor da Europa, têm adotado uma abordagem cada vez mais unilateral e imprevisível sob administrações recentes. Durante o governo Trump, por exemplo, as guerras comerciais e as declarações controversas sobre a soberania de países como Canadá e Groenlândia levantaram questões sobre a confiabilidade dos EUA como parceiro estratégico. Estudos mostram que muitos europeus agora veem os EUA como um “parceiro necessário”, mas não como um aliado confiável.
Mais preocupante ainda é a dependência militar da Europa em relação aos EUA. A OTAN, que deveria ser uma aliança igualitária, tornou-se, na prática, uma extensão da política externa americana. Isso limita a autonomia estratégica da Europa e a arrasta para conflitos que não são necessariamente do seu interesse, como as guerras sustentadas pelas indústrias armamentistas americanas.
Fragmentação interna: O maior inimigo da UE
Se há uma ameaça clara à UE, ela vem de dentro. As crescentes divisões entre os Estados-membros são evidentes nas diferentes abordagens em relação à Rússia. Enquanto a Polônia defende uma postura confrontacional, Alemanha e França têm buscado diálogo e desescalada. Essas divergências minam a capacidade da UE de se posicionar como uma força global unificada.
Além disso, a ascensão do nacionalismo e as disparidades econômicas entre os países membros colocam em risco a coesão da união. A incapacidade de tomar decisões estratégicas sobre questões críticas, como defesa e energia, deixa a Europa vulnerável em um mundo multipolar.
O caminho a seguir
Para garantir sua relevância no cenário global, a Europa precisa assumir a responsabilidade por sua própria segurança e desenvolvimento. Isso inclui:
· Reconstruir a indústria europeia: Reduzir a dependência de importações de matérias-primas críticas e tecnologias estrangeiras é essencial para fortalecer a economia europeia.
· Promover a unidade interna: Superar as divisões políticas e econômicas entre os Estados-membros é crucial para fortalecer a UE como um ator global.
· Revisar alianças estratégicas: A Europa deve buscar parcerias mais equilibradas com potências emergentes, como os países do BRICS, incluindo e principalmente a Rússia, e explorar oportunidades comerciais com blocos como o Mercosul.
· Sair da sombra da OTAN: Em vez de depender dos EUA e atender aos interesses dos EUA, a Europa deve investir em uma política de defesa autônoma, coordenando seus recursos e eliminando redundâncias para tomar decisões que satisfaçam seus próprios interesses.
A narrativa de que a Rússia é a principal ameaça à Europa é, na melhor das hipóteses, uma simplificação e, na pior, uma distração. As verdadeiras ameaças à UE residem em sua dependência dos EUA e em suas próprias divisões internas. Para evitar o colapso e as guerras internas que podem surgir, a Europa precisa repensar suas prioridades e tomar medidas decisivas rumo à autonomia estratégica. Isso exigirá sacrifícios, mas, como sempre, os europeus têm demonstrado disposição para enfrentar desafios quando necessário. Chegou a hora de olhar para dentro da Europa e construir um futuro mais resiliente e independente.