Uma nova doutrina de combate urbano se impõe à medida que facções criminosas adotam tecnologias de baixo custo para desafiar o monopólio aéreo do Estado, transformando os céus das metrópoles em um novo e perigoso campo de batalha.
O que antes era o domínio exclusivo de potências militares, o poder aéreo, foi abruptamente democratizado. Não por um tratado de paz ou pela ascensão de uma nova nação, mas pela proliferação de tecnologia de consumo.
Em 28 de outubro de 2025, durante uma megaoperação com 2.500 policiais nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, o Estado brasileiro foi confrontado com uma nova e audaciosa realidade tática: o uso ostensivo de drones armados, operados por traficantes, para atacar diretamente as forças de segurança.
Lançando granadas e bombas de fumaça sobre os agentes em solo, o Comando Vermelho (CV) não apenas retaliou a incursão, mas sinalizou a inauguração de uma nova era no conflito urbano assimétrico.
Este evento não foi um ato isolado, mas o ápice de uma rápida e perigosa curva de aprendizado criminal, cujo manual foi escrito a milhares de quilômetros de distância, nos campos de batalha da Ucrânia. A guerra iniciada em 2022 consolidou-se como o maior laboratório de inovação em veículos aéreos não tripulados (VANTs) da história, transformando drones comerciais baratos em armas letais de alta eficácia.
As táticas, técnicas e procedimentos desenvolvidos e aprimorados nesse conflito transbordaram para o mundo, sendo rapidamente assimilados por atores não estatais, de cartéis mexicanos a facções brasileiras, que viram na tecnologia uma oportunidade de verticalizar seus confrontos e desafiar a autoridade do Estado a partir dos céus.
O laboratório ucraniano: um manual de guerra “open source”
A invasão russa forçou a Ucrânia a uma inovação desesperada e descentralizada. Grupos de voluntários e entusiastas de tecnologia, como a notória organização Aerorozvidka, começaram a adaptar drones comerciais, como os da DJI, para missões de vigilância e reconhecimento, direcionando fogo de artilharia com precisão devastadora. A evolução para o uso ofensivo foi orgânica e engenhosa. Os mesmos drones foram modificados para transportar e soltar granadas, explorando a vulnerabilidade da blindagem superior de tanques.
O ponto de virada tático, no entanto, foi a ascensão do drone FPV (First-Person View). Originalmente projetados para corridas amadoras, esses pequenos e ágeis aparelhos, pilotados em tempo real através de óculos especiais, foram transformados em mísseis guiados de baixo custo. Com um custo de poucas centenas de dólares, um drone FPV carregado com explosivos podia neutralizar um ativo militar de milhões, estabelecendo uma nova e brutal assimetria econômica no campo de batalha.
Talvez o legado mais perigoso do conflito seja a disseminação global desse conhecimento. Vídeos de combate, tutoriais de modificação e discussões táticas, amplamente compartilhados em diversas plataformas, criaram um “manual de instruções” de código aberto para a guerra de drones. O que foi aperfeiçoado na Europa Oriental tornou-se acessível a qualquer grupo no mundo, fornecendo um roteiro detalhado para a militarização de tecnologia civil.
A disseminação global: dos cartéis mexicanos ao crime brasileiro
As lições da Ucrânia não tardaram a ser aplicadas no crime organizado transnacional. No México, cartéis como o Jalisco Nueva Generación (CJNG) e o de Sinaloa, que já utilizavam drones de forma rudimentar para contrabandear drogas através da fronteira com os EUA, escalaram rapidamente seu uso. O CJNG tornou-se pioneiro ao armar drones com explosivo plástico C4 e estilhaços improvisados para atacar rivais, chegando a institucionalizar essa capacidade com a criação de uma unidade especializada, os “Operadores Droneros”.
No Brasil, a trajetória foi similar, mas ainda mais veloz. A primeira fase de adoção focou-se na logística: drones eram usados como “mulas” aéreas para entregar drogas, armas e celulares em presídios, como desarticulado pela “Operação Mavick” no Rio Grande do Sul, que revelou uma rede criminosa que importava drones do Paraguai e da China para esse fim.
A segunda fase foi a da inteligência. As facções passaram a usar drones para vigilância de territórios rivais e, de forma mais alarmante, para contra-vigilância, monitorando pátios de delegacias e batalhões na véspera de operações policiais, neutralizando o elemento surpresa.
A terceira e mais perigosa fase foi a da militarização para o combate. Em julho de 2024, um drone foi filmado lançando um explosivo contra membros do CV no Rio. Segundo testemunhas, o drone teria sido pilotado por traficantes ligados ao Terceiro Comando Puro (TCP).
Em setembro, a Polícia Federal deflagrou a “Operação Buzz Bomb” para coibir o uso de drones lança-granadas pelo CV após um ataque contra milicianos. A guerra entre facções já havia se verticalizado. O ataque direto às forças do Estado era o próximo passo lógico.
O ponto de inflexão: o ataque no Rio de Janeiro
O ataque de 28 de outubro de 2025 foi um divisor de águas. Foi o primeiro uso ostensivo dessa tática contra agentes do Estado no Brasil. Investigações da Polícia Federal e da Polícia Civil confirmam a conexão direta: os traficantes aprenderam a adaptar e empregar os drones como armas observando vídeos de combates na Ucrânia.
A tecnologia por trás dos ataques é assustadoramente acessível. Drones comerciais, que custam entre R$ 7.000 e R$ 50.000, são modificados com “garras” ou ganchos que podem ser comprados por apenas R$ 120 para soltar cargas explosivas por controle remoto. Programadores desbloqueiam as limitações de software dos fabricantes, permitindo que os aparelhos voem a altitudes e distâncias muito maiores, tornando a localização do operador extremamente difícil.
A ampla visibilidade do ataque representa um catalisador para a proliferação da tática, com o risco de que outros grupos criminosos queiram “fazer igual”, elevando o nível da ameaça. A preocupação é que a tática se dissemine rapidamente, sendo adotada por facções rivais e outros grupos paramilitares. Este cenário representa uma perigosa escalada no confronto, adicionando um grau de dificuldade sem precedentes para as forças de segurança e sinalizando uma situação que demanda uma resposta urgente, antes que saia de controle.
A resposta do Estado: uma corrida contra o tempo
A escalada pegou o Estado em uma posição reativa, forçando uma corrida para desenvolver respostas em múltiplas frentes. No Congresso, projetos de lei como o PL 3835/24 buscam tipificar como crime específico o uso de drones por organizações criminosas, com penas de até doze anos de reclusão. No entanto, a agilidade do crime contrasta com a lentidão do processo legislativo.
No campo operacional, a demanda é pela criação de uma doutrina nacional para o enfrentamento da ameaça aérea. Ações proativas, como a “Operação Buzz Bomb”, que focou em prender o operador do drone em vez de apenas o equipamento, mostram um caminho estratégico. Contudo, a resposta mais urgente é tecnológica.
O Estado busca adquirir sistemas antidrone (C-UAS), mas a escolha é complexa. Soluções de interferência (jamming) ou cinéticas (abate a tiros) são extremamente arriscadas em ambientes urbanos densos como as favelas, pois a queda de um drone carregado com explosivos pode ser catastrófica. A tecnologia mais promissora é a de “take-over” ou “soft-kill”, como o sistema EnforceAir, que permite assumir o controle do drone invasor e pousá-lo em uma área segura, neutralizando a ameaça sem risco colateral. Essa tecnologia, segundo especialistas, pode devolver a vantagem tática às forças de segurança.
A verticalização do conflito urbano é uma realidade irreversível. A inação ou uma resposta fragmentada permitirá que o poder aéreo se consolide nas mãos do crime organizado, com consequências imprevisíveis para a segurança pública e a estabilidade do Estado. O que aconteceu nos céus do Rio de Janeiro não foi apenas um ataque; foi uma declaração de que o campo de batalha mudou, e o Estado precisa, urgentemente, aprender a lutar nesta nova dimensão.





