A cerimônia do Oscar, marcada para o próximo dia 2 de março, certamente será a mais aguardada da história. Pelo menos para o cinema brasileiro. O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles – que conta a história da família do deputado Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura durante os anos de chumbo, pela ótica de sua viúva Eunice Paiva – recebeu inéditas três indicações este ano: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, com Fernanda Torres. Por causa disso, foram inúmeras nos últimos dias as sugestões de contribuições sobre o filme feitas por acadêmicos de diversas áreas das Ciências Humanas para o The Conversation Brasil. Textos que procuram explicar as causas do sucesso. Seja sob o ponto de vista da técnica cinematográfica, da riqueza do roteiro, da qualidade das interpretações ou da importância histórica e sociológica de uma obra que coloca o dedo, com cirúrgica delicadeza, nas feridas da ditadura civil-militar que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. Mas no artigo abaixo, o doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica do Chile Matias López faz um contraponto aos elogios, apontando na obra a presença de uma contradição social característica do Brasil. Em seu texto, Matias questiona por que os filmes brasileiros mais bem sucedidos na crítica ao autoritarismo do passado e à desigualdade do presente são feitos justamente por integrantes desta própria elite que um dia financiou a ditadura e que, hoje, parece virar as costas para a desigualdade social.
Pela segunda vez, um filme do diretor brasileiro Walter Salles chega ao cume do show business com indicações ao prêmio Oscar. Décadas antes de emplacar “Ainda estou aqui”, uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, Salles dirigiu “Central do Brasil” (1998), que concorreu a duas estatuetas. Os dois filmes apresentam, de modo dramático e tecnicamente impecável, uma visão crítica do autoritarismo e da desigualdade no Brasil, respectivamente. Filho de banqueiro e ele próprio um dos homens mais ricos do país, Salles representa uma elite que se beneficia das mesmas estruturas que seus filmes criticam. Isso levanta uma pergunta: por que pessoas da elite adotam visões progressistas?
Não posso responder diretamente sobre Walter Salles, mas existem dados que ajudam a entender os processos que levam pessoas normalmente associadas a interesses econômicos de direita a adotarem posições tipicamente de esquerda. E esses dois filmes permitem ilustrar esses processos no Brasil.
“Ainda Estou Aqui”: Elites contra o autoritarismo
O filme mais recente de Salles retrata a história de Eunice Paiva, uma mulher rica que, da noite para o dia, vê seu marido, Rubens Paiva, desaparecer nas mãos do regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Eunice era branca, representada com ares de socialite, mãe de cinco filhos e senhora de um casarão em frente ao mar do Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro. Seu marido era um ex-deputado federal e sócio de uma empreiteira. O filme retrata como, apesar de preocupada com o endurecimento do regime militar, a família Paiva continuava promovendo festas e mantendo uma vida social relativamente normal. Afinal, até então, o Estado brasileiro nunca havia se voltado contra pessoas como elas.
Outros aspectos do autoritarismo brasileiro, muitos dos quais permanecem até hoje, não são problematizados no filme. Por exemplo, gera certo incômodo a personagem da empregada doméstica, que reside na casa e serve aos Paiva, mas transita pelos frames quase sem voz. Não sabemos nada sobre como ela e sua possível família foram afetadas por esse período histórico. O foco está no trauma de parte da elite que se viu vitimizada pelo autoritarismo fora de controle.
Esse trauma ajuda a explicar porque, nos anos 1980 e 1990, a democracia passou a ser uma bandeira da mesma elite que apoiou o golpe de 1964. Pesquisas no final dos anos 80 sugerem que a quebra na aliança entre setores das elites foi um fator importante para explicar o fim da ditadura. Pessoas privilegiadas, que antes apoiavam o regime como forma de conter uma superestimada ameaça comunista, viram seus filhos, amigos e frequentadores de suas festas sendo perseguidos. Com o regime militar devorando parte de sua base social, elites passaram a apoiar a democracia para estabelecer um novo acordo de garantias mútuas.
“Central do Brasil”: Elites pela reforma agrária
Igualmente dramático e esteticamente impecável, “Central do Brasil” mostra como a democracia não solucionou todos os problemas causados ou agravados pela ditadura. Os militares prometeram desenvolver o país, mas o deixaram com níveis exorbitantes de pobreza e desigualdade. O filme retrata a pobreza pós-redemocratização, nos anos 1990, com foco na população que participou do êxodo rural, migrando do Nordeste agrário para as grandes metrópoles do Sudeste.
A situação social dramática de pobreza e desigualdade gera consequências também para as elites, na forma de violência, radicalização dos pobres e epidemias. Pesquisas da época mostram que setores das elites, incluindo os mais conservadores, reconheciam e se preocupavam com os efeitos dessas consequências negativas, que os cientistas sociais chamamos de externalidades. Essa preocupação explica porque, nos anos 1990, havia uma tendência dos políticos de direita a se posicionar publicamente mais à esquerda.
Em minha pesquisa, publicada no Journal of Latin American Studies, demonstro como o interesse em mitigar os efeitos dessas externalidades levou elites e partidos da direita a apoiar medidas redistributivas, como a reforma agrária nos anos 1990. Naquela época, uma coalizão ampla de elites acreditava na ideia de enviar os pobres de volta ao campo como solução para a crise social nas metrópoles mais ricas.
O filme de Salles não menciona a reforma agrária, mas representa bem a visão das elites da época sobre esse tema social. Ele relata a jornada de um menino órfão levado de volta ao sertão, onde reencontra sua família em um conjunto habitacional do governo. A cidade grande é retratada em tons frios e cheia de perigos, enquanto o campo surge em tom sépia, onde brilha a esperança de um futuro melhor. Não posso afirmar que Salles acreditasse na política de retorno ao campo, mas “Central do Brasil” ilustra bem essa visão da pobreza.
Interesses progressistas das elites
Pode parecer contraditório que as próprias elites critiquem o autoritarismo e a desigualdade e liderem movimentos que, aparentemente, vão contra os seus próprios interesses. Mas a ciência social explica esse fenômeno. As consequências do autoritarismo e da desigualdade podem fazer com que visões progressistas estejam em sintonia com os interesses de setores importantes da elite.
No entanto, a crítica e a mudança promovidas de cima para baixo também têm suas consequências. Notadamente, as democratizações e redistribuições capitaneadas por elites frequentemente resultam em processos de modernizações conservadoras, que tendem a manter intactos muitos dos antigos privilégios. Ao estilo da frase clássica de outro filme, “O leopardo”, de Luchino Visconti: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.