Substâncias psicoativas e novas tecnologias celulares se unem para transformar nossa compreensão sobre saúde mental e a própria consciência humana.
Os psicodélicos, do grego psychē (“mente”) e delos (“manifestar”), são substâncias psicoativas capazes de provocar intensas alterações na percepção, cognição e consciência. Reconhecidos por evocar conteúdos mentais profundos e emoções latentes, compostos como a dimetiltriptamina (DMT), presente na ayahuasca, e a psilocibina, encontrada em cogumelos do gênero Psilocybe, vêm sendo utilizados há séculos por diferentes culturas tradicionais. Essas substâncias moldaram visões cosmológicas e tiveram papel central na estruturação de crenças e práticas espirituais ao longo da história da humanidade.
O interesse científico moderno surgiu a partir do século XX, mais precisamente na década de 40, quando o químico suíço Albert Hofmann descobriu os efeitos psicoativos do LSD (dietilamida do ácido lisérgico), um composto semissintético derivado do ácido lisérgico presente em fungos do gênero Claviceps.
Entre 1950 e 1965, mais de mil artigos científicos foram publicados sobre psicodélicos, envolvendo aproximadamente 40 mil pacientes em ensaios clínicos nos Estados Unidos, Europa e em menor escala no Brasil, onde instituições como a USP e a UFRJ conduziram estudos exploratórios com LSD e mescalina, registrados em publicações como o Boletim da Clínica Psiquiátrica da FMUSP e relatados em documentos históricos sobre os primeiros usos clínicos no país.
Destacam-se os estudos pioneiros de Humphry Osmond e Abram Hoffer, que investigaram o uso terapêutico do LSD no tratamento do alcoolismo, assim como as contribuições de Sidney Cohen, cujas pesquisas sobre segurança e efeitos adversos ajudaram a delinear os primeiros parâmetros experimentais para a aplicação clínica da substância. Esse ciclo de intensa investigação foi interrompido nas décadas seguintes por restrições legais e pelo crescente estigma cultural associado aos psicodélicos.
A partir do final dos anos 1990, a ciência psicodélica passou por um renascimento, impulsionado por evidências crescentes do potencial terapêutico de substâncias como LSD, psilocibina, DMT e MDMA no tratamento de transtornos como depressão resistente, transtorno de estresse pós-traumático e dependência química, especialmente quando usadas em contextos de psicoterapia assistida.
Uma nova fase da pesquisa psicodélica
Desde o início dos anos 2000, o número de publicações científicas sobre psicodélicos cresceu exponencialmente, incluindo artigos em periódicos de alto impacto e resultados promissores de ensaios clínicos. O campo reconquistou legitimidade acadêmica e passou a integrar centros de pesquisa dedicados, departamentos universitários e redes hospitalares.
Apesar dos avanços, um desafio permanece: compreender os mecanismos celulares e moleculares por meio dos quais essas substâncias atuam no cérebro humano.
Grande parte dos dados atuais deriva de estudos de comportamento ou neuroimagem em pacientes e animais, o que reforça a necessidade de plataformas experimentais complementares para revelar novas camadas de compreensão neurobiológica sobre os efeitos dessas substâncias.
Por que os psicodélicos atraem tanto interesse?
Psicodélicos atuam predominantemente sobre receptores serotoninérgicos, em especial o 5-HT2A, e possivelmente também sobre receptores de neurotrofinas, modulando circuitos relacionados à percepção, cognição, e processamento emocional. Evidências demonstram que essas substâncias induzem plasticidade neural com efeitos duradouros.
Em contextos terapêuticos controlados, os psicodélicos têm mostrado eficácia no alívio de sintomas graves e refratários, com melhora sustentada mesmo após poucas sessões. No entanto, os mecanismos que sustentam tais benefícios terapêuticos ainda estão sendo desvendados. Para avançarmos, precisamos de estratégias experimentais que representem melhor a neurobiologia humana.
Limitações dos modelos animais e a ascensão dos modelos humanos in vitro
Modelos animais foram essenciais para demonstrar que psicodélicos promovem plasticidade sináptica rápida e duradoura, com remodelação estrutural de circuitos cerebrais. Estudos com psilocibina, por exemplo, mostraram aumento da densidade de espinhas dendríticas e maior conectividade sináptica em regiões do cérebro de roedores.
Ainda assim, muitos compostos que mostraram eficácia em camundongos falharam em humanos. Isso ocorre porque o nosso cérebro apresenta arquitetura, transcriptoma e metabolismo distintos.
A dificuldade de tradução entre animais e humanos tem sido um desafio não só na psiquiatria, mas em toda a neurociência translacional. Além disso, há uma pressão ética e regulatória pela substituição do uso de animais em pesquisa. Métodos in vitro, baseados em células-tronco humanas, oferecem, em algumas situações, alternativas.
Esse movimento já se consolidou em setores como o de cosméticos, com proibições ao uso de animais em testes em diversos países, incluindo o Brasil, que sancionou uma lei em julho de 2025. Nesse novo cenário científico e regulatório, as células-tronco e os organoides cerebrais ganham protagonismo.
Organoides cerebrais: o que são e por que importam?
Células-tronco pluripotentes (PSCs) são células capazes de se diferenciar em qualquer tecido do corpo humano. Reprogramadas a partir de células adultas, como as da pele, podem ser cultivadas para originar diferentes tipos celulares, incluindo neurônios e glia e formam o cérebro humano.
Quando cultivadas em condições que permitem sua organização em três dimensões, em vez de se espalharem sobre superfícies planas, as células-tronco podem formar organoides: estruturas que imitam aspectos da morfologia e função de órgãos específicos. No caso dos organoides cerebrais, esses aspectos se referem ao cérebro humano.
Esses modelos biológicos vivos permitem observar, em tempo real e com resolução celular, como substâncias psicodélicas afetam a expressão gênica, a densidade sináptica, o metabolismo e a atividade elétrica de neurônios humanos. E mais: é possível gerar organoides cerebrais a partir de células de pacientes com diferentes perfis psiquiátricos, o que abre caminho para abordagens personalizadas.
Revisão traz luz para a compreensão do estado da arte
Nós realizamos uma revisão sistemática da literatura sobre os usos de PSCs e organoides cerebrais e a investigação dos efeitos celulares dos psicodélicos. O estudo, publicado no periódico iScience, analisou mais de 180 artigos e reuniu evidências de que esses modelos são adequados para o estudo da plasticidade induzida por psicodélicos e seus efeitos sobre inflamação e redes sinápticas.
Além disso, os organoides cerebrais permitem testar compostos em diferentes concentrações, avaliar efeitos adversos e explorar interações entre diferentes tipos celulares, como neurônios excitatórios e inibitórios, astrócitos e, em modelos mais complexos, células microgliais, que desempenham papéis centrais na vigilância imunológica, poda sináptica e neuroinflamação. A inclusão de microglia nesses modelos geralmente requer estratégias de co-cultura, refletindo sua origem ontogenética distinta.
Apesar das limitações, como a maturidade ainda incompleta desses tecidos, coquetéis de fatores químicos ou metabólicos que simulam aspectos do amadurecimento celular e cultivos prolongados vêm superando esses obstáculos.
O futuro: desafios e oportunidades
As pesquisas baseadas em células-tronco oferecem a oportunidade de comparar a resposta clínica de um paciente ao tratamento com psicodélicos à resposta observada em suas próprias células neuronais cultivadas em laboratório.
Essa abordagem integrativa, que conecta o sistema nervoso ao seu “avatar neural” em miniatura, poderá revelar marcadores preditivos de resposta e ajudar no desenvolvimento de novas formulações com maior especificidade.
Claro, ainda há muitos desafios: o aprimoramento dos modelos celulares disponíveis, a padronização de protocolos experimentais e a necessidade de maturação funcional mais ampla das redes neurais.
Ferramentas como a edição gênica por CRISPR, já empregadas para introduzir ou corrigir mutações associadas a transtornos do neurodesenvolvimento em organoides cerebrais, vêm permitindo a modelagem precisa de fenótipos patológicos.
Aliado a isso, o uso de células derivadas de doadores com perfis genéticos e clínicos bem caracterizados tem contribuído para reduzir a variabilidade experimental e aumentar sua relevância translacional.
Assim como aconteceu com o sequenciamento do genoma humano, o acesso a essas tecnologias irá se tornar mais democrático. Os organoides cerebrais não são ficção científica, mas realidade em centros de pesquisa de várias partes do mundo. E vieram para ficar.
Conclusão
A combinação de psicodélicos e organoides cerebrais representa uma das mais estimulantes e transformadoras fronteiras da neurociência contemporânea.
Passamos de uma ciência baseada na observação de sintomas para uma investigação celular, molecular e personalizada dos mecanismos que regem a mente humana.
Pela primeira vez, conseguimos observar como compostos que alteram a consciência interagem com redes neurais humanas vivas, fora do corpo.
Essa revolução metodológica nos aproxima de terapias mais eficazes, seguras e adaptadas à individualidade biológica de cada indivíduo. Mas seu impacto vai além da psiquiatria. Estamos construindo pontes entre mundos antes isolados, entre neurociência e espiritualidade, entre subjetividade e sinapse.
Nesse processo, torna-se cada vez mais evidente o valor do diálogo entre diferentes formas de conhecimento: a ciência experimental e os saberes tradicionais, que por séculos observaram e integraram a relação entre mente, corpo e natureza. Essa síntese de perspectivas poderá enriquecer não apenas nossas hipóteses, mas também nossa compreensão sobre a consciência.
Em um planeta em que a saúde mental é um dos maiores desafios do século, compreender a mente humana nunca foi tão urgente. E talvez, no final das contas, o que os psicodélicos e os organoides estejam nos dizendo é que as respostas para nossos desequilíbrios mais profundos não estão fora de nós, mas dentro. À vista de quem tiver as ferramentas certas para enxergar.