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Amazônia Preta: quando ciência e ancestralidade se encontram nas comunidades quilombolas

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Amazônia Preta: quando ciência e ancestralidade se encontram nas comunidades quilombolas

Em uma conversa sobre a invisibilidade da população negra no Brasil — nascida das experiências pessoais e profissionais de cientistas negros e de um pesquisador branco periférico — emergiu uma reflexão sobre a força e, ao mesmo tempo, a invisibilização dos conhecimentos e saberes tradicionais.

Dessa troca nasceu a ideia da “Amazônia Preta”, um conceito que reconhece uma dimensão da floresta historicamente silenciada, mas pulsante: aquela que carrega as marcas, os modos de vida e os saberes das populações negras, quilombolas e afrodescendentes.

Aquilombamento

Os quilombos amazônicos foram espaços de resistência pela sobrevivência, formados por negros e negras de origem africana e seus descendentes que foram escravizados. Mas eles criaram vários mecanismos de resistência, entre eles a fuga.

Como uma possibilidade de existência durante o sistema colonial, os quilombos brasileiros, que tem sua origem no continente africano, foram — e continuam sendo — estratégias de resistência, confluência e liberdade.

A palavra Kilombo advém da língua Bantu, significando agrupamentos de defesa. São espaços de refúgio e criação coletiva, onde o viver comunitário, a partilha e o cuidado com a terra se tornaram parte de uma identidade étnica no Brasil e na América Latina.

Embora majoritariamente negros, os quilombos sempre foram espaços abertos, que aceitaram indígenas, brancos desafortunados e outros povos marginalizados. Essa pluralidade é a própria essência do aquilombamento: uma rede de solidariedade e reciprocidade que desobedece as hierarquias raciais e coloniais.

É tecer relações que unem o humano, o território e o sagrado, em um movimento que o pensador quilombola Nêgo Bispo chama de biointeração: uma convivência em que gente e natureza se coproduzem, se equilibram e se regeneram mutuamente. Essa sabedoria, tantas vezes negligenciada, começa agora a ser reconhecida pela própria ciência.

Um estudo publicado na Nature revelou o que as comunidades quilombolas sempre souberam: onde os povos afrodescendentes cuidam da terra, a floresta resiste e permanece de pé.

Pesquisadores analisaram territórios no Brasil, Colômbia, Equador e Suriname e descobriram que as terras ocupadas por quilombolas e afrodescendentes têm até 55% menos desmatamento do que áreas vizinhas, além de abrigarem ecossistemas entre os mais ricos em biodiversidade do planeta.

Esses territórios são os verdadeiros guardiões de carbono, de histórias e de futuros possíveis. Neles, o conhecimento ancestral africano se entrelaça com o conhecimento indígena, construindo o afroindígena, que respeita, cuida, preserva e protege a floresta tropical, formando sistemas agroflorestais, cultivos diversificados e uma ética do cuidado que desafia o modelo predatório de exploração.

Amazônia Preta

A Amazônia Preta é, antes de tudo, uma Amazônia quilombola – um território de confluência, onde se encontram negros, indígenas, brancos e mestiços aquilombados. Nascida dos passos firmes de quem não aceitou ter seus corpos, mentes e almas condenados à escravização, resistindo em um processo de aquilombar-se em um território para construção de uma liberdade coletiva em diferentes regiões da Floresta Amazônica.

Dessa reflexão nasceu a proposta de um projeto voltado ao estudo da Amazônia Quilombola e de sua importância para a biodiversidade, destacando o papel das comunidades quilombolas como guardiãs da biodiversidade e do conhecimento ecológico.

Com a abertura das chamadas do programa Amazônia +10 para expedições científicas, nasceu o Biotech Quilombo. Esta iniciativa pioneira coloca as comunidades quilombolas no centro do monitoramento da biodiversidade amazônica, combinando conhecimento ancestral e ciência de ponta para desenvolver abordagens comunitárias e tecnologicamente inovadoras de conservação ambiental.

O projeto busca criar um modelo de pesquisa verdadeiramente colaborativo, em que sensores, biotecnologia e saberes tradicionais se unem para fortalecer a autonomia das comunidades na gestão de seus territórios e na preservação da floresta.

A partir dessa base, surgiram outras iniciativas complementares. Uma delas é o Projeto Transformando Evidências e Resultados em Ações Quilombolas para Conservação Inclusiva de Gênero e Gestão Territorial na Amazônia Legal Brasileira – TERAQ_G, que integra tecnologias regenerativas, dados ambientais e saberes locais para promover a restauração ecológica e a governança territorial em territórios quilombolas e tradicionais.

Outra iniciativa nascida nesse contexto é o COSQUI (Conflitos Socioambientais, Saúde Mental e Quilombos), voltado à coprodução de conhecimento socioambiental com foco na promoção da saúde mental nos territórios, aproximando pesquisadores, mestres quilombolas e jovens líderes comunitários de diferentes regiões do Brasil.

Juntas, essas iniciativas caminham na mesma direção: unir tecnologia e ancestralidade para preencher as lacunas da ciência tradicional, fortalecer a autonomia dos povos da floresta e construir pontes entre cultura, ciência e ambiente.

Esses projetos representam mais do que pesquisa: inspiram uma nova forma de fazer ciência — uma ciência em que o conhecimento tradicional e o acadêmico se encontram de forma simétrica, horizontal e inclusiva.

Novas formas de fazer ciência

A urgência de novas formas de fazer ciência também se revela nos números. Um relatório do projeto Synergize mostra que, embora a Amazônia concentre quase metade do território brasileiro, ela recebe menos de 10% dos recursos nacionais destinados à pesquisa em biodiversidade.

A maioria dos estudos ainda se concentra nas áreas próximas a grandes centros urbanos, enquanto regiões de nascentes, florestas de terra firme e territórios quilombolas permanecem fora do mapa da ciência. Essa desigualdade geográfica e epistêmica mostra porque é tão importante apoiar redes de pesquisa que integrem universidades, instituições e comunidades locais — e que valorizem saberes construídos no próprio território.

É uma ciência colaborativa, que reconhece que saber não é monopólio de laboratórios ou universidades, mas também floresce nas comunidades que há séculos observam, sentem e cuidam da floresta. Essa forma de produzir conhecimento não é apenas uma escolha metodológica, mas também política.

Pesquisadores latino-americanos têm mostrado que a decolonização da ciência começa quando o conhecimento é coproduzido com as comunidades, e não apenas sobre elas. A ética também é parte essencial dessa nova ciência. Pesquisadores e pesauisaras do Brasil têm lembrado que trabalhar com povos indígenas, quilombolas e comunidades locais exige muito mais do que formulários de consentimento: requer reconhecer a soberania desses grupos sobre seus próprios saberes e construir relações baseadas em confiança e reciprocidade.

A pesquisa só é verdadeiramente ética quando promove justiça epistêmica — isto é, quando diferentes modos de conhecer o mundo coexistem sem hierarquia e sem traduzir os saberes locais à lógica da ciência ocidental. As trajetórias quilombolas precisam ser visibilizadas em suas praticas de resistência e de conservação dos seus territórios de forma ancestral na Amazonia.

É nesse ponto que o verbo aquilombar — como ensina Nêgo Bispo — ganha força. Aquilombar não é apenas buscar refúgio: é criar espaço de confluência, de partilha e de reinvenção coletiva. É transformar o ato de pesquisar em um gesto de encontro — onde a ciência desaprende a dominar e reaprende a escutar.

Essa perspectiva ressoa fortemente na Amazônia Quilombola, onde o conhecimento ancestral não é “objeto” de estudo, mas fonte ativa de teoria e transformação, capaz de renovar o próprio sentido do que chamamos de ciência. A Amazônia Preta também nasce dessa mesma perspectiva: a ciência feita com os quilombos, e não sobre eles. Uma ciência que se constrói caminhando junto, onde a troca de saberes é também um gesto de cura e de futuro.

No contexto da COP 30, em Belém, essa trajetória ganha ainda mais relevância. A presença de vozes quilombolas, aliadas à ciência e à inovação, reforça a urgência de articular saberes tradicionais e tecnologias contemporâneas para enfrentar os desafios climáticos e promover uma transição justa e inclusiva para toda a Amazônia. Pessoas não quilombolas precisam aprender com as comunidades quilombolas esses caminhos ancestrais para conservação da floresta, agindo de maneira ativa na construção de ações para diminuir o aquecimento global de uma forma não colonista.

Devemos atuar com o foco no envolvimento dos vários atores em uma coalização de confluência para a preservação da floresta e combate as mudanças climáticas em que as comunidades quilombolas estejam no centro das tomadas de decisão como uma forma de justiça ambiental ancestral.


A equipe de coordenação do projeto Amazonia BiotechQuilombo é composta por seis coordenadores pelos Drs. Polyanna da C. Bispo, Celso H.L. Silva Junior, Paulo M.L.A. Graça, Nivia P. Lopes, Pitágoras C. Bispo e Loïc Pellissier.

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