Nos últimos anos, a Amazônia se tornou palco de uma sobreposição de vigilâncias: a militar, que patrulha fronteiras em nome da soberania nacional, e a indígena, que protege territórios ameaçados em nome da sobrevivência coletiva. Essa coexistência tensa revela algo mais profundo: a floresta é também um campo de disputa sobre o que é segurança e sobre quem tem o direito e a obrigação de exercê-la.
Na região, o verbo proteger não tem um único sentido. Para o Estado, significa controlar, monitorar e antecipar ameaças. Para os povos indígenas, é cuidar e manter vivos os vínculos entre humanos, espíritos e territórios. As duas racionalidades coexistem, mas raramente se encontram. A primeira se sustenta em tecnologias de guerra e vigilância; a segunda, em redes de reciprocidade e escuta.
É nesse intervalo entre o controle e o cuidado que a política da segurança amazônica se torna mais do que uma questão militar. Ela revela o embate entre duas cosmovisões: uma que entende a floresta como fronteira nacional e outra que a reconhece como corpo coletivo.
A questão indígena na Amazônia está no centro das disputas sobre território e soberania. A floresta, tradicionalmente tratada pelo Estado brasileiro como um extenso vazio, como uma fronteira a ser vigiada, é também o espaço de coexistência de centenas de povos que estruturam formas próprias de organização social, economia e espiritualidade.
No noroeste do Amazonas, na região do Alto e Médio Rio Negro, vivem cerca de 32 mil pessoas distribuídas em 25 etnias e falantes de 21 idiomas das famílias Aruak, Tukano, Makú e Naduhup (ISA,2025). Essa multiplicidade étnica e linguística faz da região uma das áreas mais densamente povoadas por indígenas no Brasil e um território singular, onde os limites entre Brasil, Colômbia e Venezuela se diluem no cotidiano das relações de parentesco e de circulação. Descrevemos esse processo no estudo Militarização e Soberania na Amazônia Brasileira: Um estudo sobre o Governo Bolsonaro.
Apesar dessa densidade humana e cultural, o Alto Rio Negro também é marcado pela forte presença das Forças Armadas. Sete Pelotões Especiais de Fronteira operam na região, transformando o território em uma zona de vigilância contínua. Nas últimas décadas, setores militares passaram a tratar as terras indígenas como potenciais ameaças à segurança nacional, argumentando que sua extensão e autonomia poderiam comprometer a integridade territorial do país.
Formas próprias de gestão e cooperação
Esse enquadramento securitário, contudo, contrasta com a fragilidade estrutural do Estado na oferta de políticas públicas e na proteção efetiva das populações locais. A distância entre presença militar e ausência social reforça um paradoxo: as mesmas instituições que afirmam proteger a soberania nacional muitas vezes são percebidas pelos povos indígenas como fontes de ameaça à sua autonomia e ao seu particular modo de vida.
Nesse contexto, as comunidades indígenas do Alto Rio Negro desenvolveram formas próprias de gestão territorial e de cooperação transfronteiriça para garantir sua segurança e a sustentabilidade da floresta, sem o que a sua própria existência corre riscos. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN, criada em 1987, consolidou-se como uma das experiências mais complexas e consistentes de governança indígena na Amazônia, articulando 90 associações e mais de 700 comunidades em um sistema de representação interétnica voltado à defesa dos territórios e à promoção da autonomia.
A atuação da FOIRN ultrapassa a dimensão de uma estrutura política: ela expressa um modo particular de articular técnica, território e existência. Essa perspectiva pode ser compreendida a partir do conceito de cosmotecnologia de Yuk Hui (2020), entendido como a forma pela qual cada civilização integra técnica e moral, natureza e espírito, em um mesmo horizonte de sentido.
Para Yuk Hui, referência em filosofia e engenharia computacional, a cosmotecnologia não se limita ao emprego da técnica, mas envolve o modo como ela é incorporada em uma determinada visão de mundo. É uma síntese entre ética e materialidade, entre a dimensão espiritual e o fazer técnico. No caso dos povos indígenas, essa concepção é vivida naturalmente, em um domínio existencial de técnicas culturalmente associadas à sua cosmologia que integram a floresta, sua vida e o mundo espiritual como um organismo indissociável. E que contribui para manter o equilíbrio entre humanos, não humanos, espíritos e território. Essa lógica se manifesta tanto nos sistemas tradicionais de comunicação, como o uso ritualizado da palavra e da escuta (em assembleias e rituais sagrados), quanto na apropriação seletiva de tecnologias modernas, reinterpretadas segundo valores e finalidades coletivas.
Abordagens diferenciadas da tecnologia
Quando a FOIRN utiliza rádios, sistemas de georreferenciamento ou conexões via satélite Starlink, não o faz para reproduzir o modelo de vigilância centralizada do Estado, mas para sustentar uma rede de interdependência. Os mapas e os sinais não servem para traçar fronteiras fixas, e sim para reforçar a coesão das comunidades e o acompanhamento conjunto das ameaças. A informação circula como um bem coletivo, e não como instrumento de controle. Em vez de submeter a floresta à lógica da observação, essas práticas tecnopolíticas ampliam a capacidade de escuta, permitindo que cada comunidade responda aos sinais do território e às necessidades de seus parentes.
Essa forma de uso tecnológico revela uma cosmotecnologia do cuidado, que subverte a lógica moderna da segurança como antecipação do risco. Para os povos do Rio Negro, segurança é a continuidade de corpos, de saberes, de relações. A técnica, nesse horizonte, não busca dominar a natureza, mas participar de sua vitalidade. A antena de satélite e o mapa digital tornam-se extensões do corpo coletivo da floresta, e não dispositivos de distanciamento.
O Exército, por sua vez, opera sob uma cosmotecnologia inautêntica. Ele usa tecnologias criadas por outras sociedades e, com isso, adota suas formas de pensar e agir, em vez de desenvolver uma relação própria com esses instrumentos. Suas bases na Amazônia são estruturadas a partir de uma concepção territorial herdada do pensamento geopolítico moderno, que associa segurança à vigilância e soberania ao controle espacial. A instalação de radares, centros de monitoramento e sistemas de sensoriamento remoto (como o Sistema de Vigilância da Amazônia – SIVAM, e seu desdobramento, o SIPAM) traduz a floresta em dados, imagens e coordenadas. Nessa racionalidade, o território deixa de ser um corpo vivo e passa a ser uma superfície a ser observada.
Essa diferença de perspectiva não é apenas técnica, mas ontológica. Enquanto a cosmotecnologia militar dissocia o sujeito do território, separando quem observa e o que é observado, a cosmotecnologia indígena dissolve essa fronteira – quem protege é também parte do que é protegido. No primeiro caso, a segurança é projetada de cima, a partir de centros de comando e satélites. No segundo, é tecida de dentro, no cotidiano das comunidades, a partir de relações que envolvem humanos, rios, espíritos e montanhas.
O contraste entre radares e rituais, portanto, não é apenas uma metáfora. Ele expressa duas concepções de mundo, duas cosmotecnologias em disputa na Amazônia: uma fundada na abstração do espaço e na militarização da natureza; outra, na escuta e na reciprocidade como fundamentos da vida. Se a primeira busca assegurar fronteiras nacionais, a segunda procura garantir a continuidade do cosmos.







