O dia chegou. Até agora, o governo brasileiro vinha conseguindo se manter fora do radar de Donald Trump, mesmo com uma política externa ativa e o avanço nos julgamentos dos envolvidos na tentativa de golpe da extrema-direita em 2022.
O cenário agora é outro. O governo Lula enfrenta seu teste diplomático mais sério desde o início do seu mandato. A ameaça de Trump de impor tarifas de 50% sobre todas as exportações brasileiras aos Estados Unidos é uma medida extrema, que colocaria o Brasil entre os países mais penalizados por tarifas. Ao acusar Lula de perseguir Jair Bolsonaro e outros golpistas, Trump se alinha abertamente à extrema direita brasileira, buscando deslegitimar o sistema judicial e outras instituições democráticas do país.
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos apoiaram ativamente forças antidemocráticas no Brasil, incluindo as que lideraram ou apoiaram o golpe militar de 1964 e a ditadura que se seguiu (com exceção do governo Jimmy Carter, que criticou a situação dos direitos humanos no país). A ofensiva atual usa métodos diferentes, mas reflete a mesma disposição em interferir nos processos democráticos brasileiros.
Essa interferência externa soma-se a um contexto interno já delicado. À medida que avança o processo judicial contra Bolsonaro e aliados, vai ficando clara a existência de um plano golpista articulado dentro do Palácio do Planalto, envolvendo setores das forças de segurança e incluindo planos para assassinar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes.
Mas o governo brasileiro não tem respondido com pânico nem com confronto. Pelo contrário: vem reagindo de maneira institucional — algo que outras democracias, especialmente grandes ou médias do Sul Global, fariam bem em observar. Em nota oficial, o governo reafirmou a soberania nacional e a independência de suas instituições. Ressaltou que os processos contra os envolvidos na tentativa de golpe de 2022 estão sendo conduzidos pela Justiça brasileira. Também refutou as alegações de Trump sobre um suposto déficit comercial e deixou claro que qualquer aumento tarifário será tratado conforme as leis brasileiras e o direito internacional.
O tom foi jurídico e racional. Lula recusou-se a jogar nos termos de Trump. Manteve-se em terreno institucional e legal sólido.
Essa estratégia ecoa a da presidente mexicana Claudia Sheinbaum, que também vem enfrentando pressões de Trump — especialmente nas áreas de migração, segurança e comércio. Sua resposta tem sido firme, mas sem tom de confronto. Ela enfatiza a soberania mexicana ao mesmo tempo em que mantém canais abertos para o diálogo. É uma política de firmeza com responsabilidade — que preserva a autonomia e a dignidade nacional sem inflamar tensões.
A resposta brasileira também conseguiu gerar coesão política interna. Há um efeito de rally ‘round the flag, um movimento de união nacional diante de uma ameaça externa. Lideranças de todo o espectro político — da esquerda à centro-direita e mesmo entre conservadores — manifestaram apoio à posição do governo. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e o presidente da Câmara, Hugo Motta — este do mesmo partido de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e adversário de Lula — endossaram a resposta oficial. A mídia conservadora — como Estadão, Veja e outros — criticou a carta de Trump, apontando seus custos econômicos e o caráter de interferência em assuntos internos. Na opinião pública, 62% consideram que as possíveis tarifas são injustificadas; 63% dizem ter uma imagem negativa de Trump (ante 52% em janeiro de 2025); e 51% são favoráveis a uma retaliação do governo brasileiro.
Além disso, exportadores agora voltam-se ao governo em busca de uma solução. Se o Planalto conseguir neutralizar ou mitigar a ameaça tarifária, terá uma vitória política significativa — tanto econômica quanto simbólica.
Haveria também outras respostas possíveis, mas menos adequadas. Um confronto direto provavelmente ampliaria as tensões e daria a Trump um palco para inflamar ainda mais sua base. Uma postura de complacência ou bajulação — como a de Mark Rutte no caso da OTAN, ou a do Panamá ao sair da Nova Rota da Seda — transmitiriam fraqueza ou falta de dignidade, e é inviável politicamente para um governo de centro-esquerda. Já o silêncio estratégico deixaria passar a oportunidade de afirmar a soberania e a legitimidade das instituições brasileiras.
Embora a ameaça tarifária seja grave, há motivos para acreditar que ela não se sustentará. Seria uma medida extrema, próxima de um embargo comercial parcial. A atenção de Trump é volátil, e lobbies internos nos EUA — sobretudo importadores de produtos brasileiros, exportadores para o Brasil e empresas com investimentos no país — devem resistir à proposta. Também podem surgir contestações legais nos tribunais, sobretudo em relação aos limites do International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), lei dos EUA que permite ao presidente impor sanções econômicas em situações de emergência nacional envolvendo ameaças externas.
Caso as tarifas sejam mesmo impostas, o Brasil poderia retaliar mirando setores estratégicos nos Estados Unidos — especialmente aqueles com poder de lobby ou que possam prejudicar Trump politicamente. Essa foi a estratégia adotada pela China durante seu primeiro mandato, como documentaram Kim e Margalit (2021).
De todo modo, o episódio acende uma outra preocupação: a possibilidade de interferência externa nas eleições brasileiras de 2026. A intervenção de Trump mostra que atores estrangeiros — inclusive chefes de Estado com ampla influência online — estão dispostos a enfraquecer instituições e influenciar a política no Brasil. Isso não é diplomacia tradicional. É uma forma de interferência que combina ameaças econômicas, desinformação e guerra ideológica transnacional.
Para proteger a integridade das eleições de 2026, o Brasil precisa colocar esse tema no centro de sua agenda externa. Isso exigirá articulação entre diplomacia, Justiça e órgãos de segurança — e uma estratégia clara de comunicação voltada tanto ao público interno quanto ao internacional.
E o Brasil talvez seja apenas um dos alvos. As mesmas ferramentas — coerção econômica, alinhamento político com atores de extrema-direita e desinformação em redes sociais — podem ser usadas contra outras democracias que se recusem a se alinhar a Trump.
Diante de interferências que misturam pressão econômica, desinformação e provocação, as respostas de Claudia Sheinbaum e Lula oferecem um modelo para outras democracias do Sul Global — e um lembrete oportuno de que os menos poderosos podem e devem reagir.