A eleição de Zohran Mamdani, um deputado estadual socialista e muçulmano, de 33 anos, para a prefeitura de Nova York, em 4 de novembro de 2025, marcou a política nos Estados Unidos e o Partido Democrata. Sua vitória não é apenas um resultado eleitoral local: indica a validação de um modelo de política que propõe outro tipo de administração para uma cidade, que não é uma metrópole qualquer.
Nova York é a capital mundial do mercado financeiro; é o espaço onde Donald Trump, que implorou para que os eleitores não votassem em Mamdani, construiu seus negócios no setor imobiliário e encarnou, seja como empresário, seja como político, os interesses de um dos lobbies mais poderosos do país. É, também, o lugar onde o Partido Democrata sentiu-se confortável, por décadas, em negociar com esse mesmo poder econômico e exibir, sem constrangimento, seu lado político de mercado. Mamdani venceu no terreno simbólico do adversário. E isso tem peso nacional.
É praticamente inevitável traçar comparações com outras figuras da política estadunidense. A analogia histórica mais imediata é Alexandria Ocasio-Cortez. Em 2018, aos 28 anos, assegurou a cadeira que estaria reservada a Joe Crowley, democrata experiente com 10 mandatos na Câmara, com uma campanha sustentada por doações de pequena monta (contribuições individuais inferiores a US$ 200) e por um voluntariado engajadíssimo.
Mamdani revela semelhanças ao derrotar o establishment democrata, neste caso, o ex-governador de Nova York, Andrew Cuomo, que, mesmo carregado de acusações de má conduta sexual, contou com um PAC (Comitê de Ação Política) de US$ 25 milhões e o apoio de alguns dos nova-iorquinos mais ricos, como o bilionário e ex-prefeito Michael Bloomberg.
Ocasio-Cortez e Mamdani emergiram de ativismo e mobilização de base; ambos representam grupos sociais e raciais historicamente excluídos e ambos subverteram as engrenagens tradicionais de financiamento de campanha. Ocasio-Cortez marcou e continua marcando posição com perfil progressista no Legislativo federal, Mamdani avança algumas casas ao levar a agenda de perfil progressista para o Executivo municipal de maior visibilidade global.
Origem em Bernie Sanders
Naturalmente, essa trilha nos leva a Bernie Sanders, que figura como pai da atual fase de progressistas. É verdade que Sanders não conseguiu ser o candidato democrata nas primárias de 2016, quando o Comitê Nacional Democrata escolheu Hillary Clinton. Tampouco foi o escolhido em 2020, quando o partido se movimentou rapidamente para apoiar Joe Biden, depois que Sanders se revelou um páreo com capacidade de liderar a preferência entre os eleitores democratas.
Entretanto, apesar de não ter conseguido superar os fortes entraves político-partidários, talvez em razão de uma dificuldade própria, Sanders, de fato, rompeu o silêncio sobre desigualdade, clamando insistentemente por uma agenda de direitos e conseguindo, efetivamente, introduzir no debate as propostas de taxação do ultra-ricos, de saúde universal e de Estado de bem-estar.
Ele forçou o deslocamento do eixo do discurso democrata e impulsionou Ocasio-Cortez a deslocar o eixo das práticas legislativas. Agora, é a vez de Mamdani deslocar o eixo do exercício do poder com impacto social no governo da capital financeira do mundo, responsável pela maior concentração de instituições financeiras e fluxos de capitais do planeta.
Enquanto Nova York revela o poder do progressismo, por assim dizer, nas urnas, derrotando hierarquias internas do Partido Democrata, outro movimento se verifica na costa oeste. Trata-se do avanço progressista institucional na Califórnia. Ali materializa-se a disputa pelo poder de governo.
O California Legislative Progressive Caucus, grupo organizado de legisladores dentro da Assembleia Legislativa da Califórnia e existente pelo menos desde 2019, reúne dezenas de legisladores que pressionam a liderança do Partido Democrata do estado e buscam deslocar o centro de gravidade do partido para a política de direitos.
A eleição geral de 2024 ampliou o número de integrantes do caucus à medida que candidatos apoiados por organizações como a Courage California venceram parte das disputas em que estavam envolvidos. Isso significa avanço na capacidade de formular políticas e disputar orçamento. O grupo tem se projetado com uma agenda significativa. Além de justiça ambiental e transição energética, suas pautas incluem reforma da justiça criminal, reforma tributária, política de habitação, cláusulas trabalhistas e direito à sindicalização.
O efeito “Moderate Squad”
Note-se que a institucionalização do progressismo passou a disputar orçamento, projetos que se tornam leis e prioridades de governo. A propósito, esse caucus nasce de um embate direto com um grupo oposto dentro do próprio partido: o Moderate Squad, ou Moderate Caucus. Financiados por grandes empresas e por fluxos constantes de recursos para os PACs, esses democratas conseguiram se organizar de forma mais efetiva, pelo menos desde 2011, para barrar a aprovação, justamente, de projetos do grupo progressista – direitos de saúde, trabalhistas, ambientais.
Os chamados democratas moderados se opõem às regulamentações governamentais sobre as empresas, alegando que esse tipo de intervenção impacta negativamente o número de empregos ofertados aos trabalhadores de classe média e de baixa renda. Os progressistas respondem que a ausência de regulação destrói vidas.
Entretanto, o ciclo eleitoral de 2024 revela o limite dessa ascensão. Na disputa pelo Senado dos Estados Unidos, Adam Schiff, identificado com o establishment democrata, derrotou candidaturas de perfil mais progressista – Katie Porter e Barbara Lee – e acabou de fato assegurando a cadeira do Senado federal que estava sendo disputada pelo candidato republicano, Steve Garvey, um ex-jogador da Major League Baseball sem experiência política. Isso mostra que tem havido avanço institucional no estado, mas o poder ainda está nas mãos dos chamados moderados, que tender a ocupar os cargos de prestígio.
Em 2025, é prematuro afirmar que se está diante de um novo Partido Democrata. O sucesso dos progressistas está longe de dominar o cenário político estadunidense. O partido continua dividido entre uma direção nacional predominantemente centrista e uma insurgência progressista, por assim dizer, organizada, estratégica e multirracial, que avança pelas bordas, envolvendo distritos urbanos, assembleias legislativas, cidades poderosas.
Zohran Mamdani legitimamente chegou ao controle de uma máquina urbana tradicionalmente controlada pelas elites. Na Califórnia, o movimento progressista disputa orçamento e prioridades de governo. O Partido Democrata está sendo sacudido.
