O tarifaço para a entrada de produtos brasileiros nos Estados Unidos foi precedido por outro um anúncio. Em 2 de abril deste ano, o presidente Donald Trump declarou – no que ele chamou de “Liberation Day” – estado de emergência nacional para impor tarifas recíprocas. Uma alíquota-base de 10% sobre quase todas as importações, e taxas adicionais de até 50% para os países com os quais os EUA supostamente manteriam seus maiores déficits comerciais.
A medida atingiu praticamente todos os parceiros comerciais dos EUA e gerou ampla controvérsia na comunidade internacional, sendo interpretada como um retrocesso nas práticas multilaterais e como reflexo de uma postura cada vez mais protecionista por parte dos Estados Unidos.
Trump afirmou que sua decisão estava pautada no desejo de “equalizar o campo” no comércio internacional. Segundo ele, os Estados Unidos enfrentavam uma relação deficitária com os países taxados. Ainda que o país tenha encerrado 2024 com um déficit expressivo de US$ 918 bilhões em sua balança comercial, o desempenho do Produto Interno Bruto (PIB), que alcançou US$ 29 trilhões, evidencia a resiliência da economia norte-americana e sua capacidade de atrair investimentos, mesmo diante de desequilíbrios externos.
O déficit da balança comercial dos Estados Unidos não é recente e possui raízes em 1976, quando os primeiros resultados negativos foram registrados. Esse movimento resultou de fatores estruturais e conjunturais, como os Choques do Petróleo (1973 e 1979), que impactaram os custos de produção e a balança de pagamentos; a crescente expansão do consumo interno; e a valorização do dólar, que reduziu a competitividade das exportações norte-americanas. Desde então, a economia estadunidense tem sido fortemente voltada ao consumo interno, apresentando menor dependência das exportações. Ressalta-se que as importações elevadas decorrem da forte demanda doméstica por bens duráveis e semiduráveis, bem como da necessidade de abastecimento das indústrias nacionais. Também é relevante destacar que os Estados Unidos ocupam uma posição singular na economia global, sendo o único país com capacidade sustentada de operar em déficit comercial, graças à hegemonia do dólar como moeda de reserva e à atratividade de sua economia para os capitais internacionais.
Alianças econômicas e geopolíticas ameaçadas
Contudo, desde a ascensão da nova direita no cenário internacional, observa-se, em diversos países, o fortalecimento de discursos e movimentos isolacionistas. Trump é um dos principais representantes desses movimentos, mobilizando a retórica do protecionismo como estratégia eleitoral e ideológica. O presidente estadunidense se elegeu com o discurso America First, e sua política de tarifação está estreitamente alinhada a essa retórica. Deve-se atentar, ainda, para a divisão interna causada por essa medida. Enquanto uma oposição por parte dos democratas era esperada, chama atenção o fato de que parte dos republicanos também se posicionou contra o tarifaço, o que evidencia o esforço de Trump em agradar a sua base eleitoral, independentemente de sua sustentação no Congresso.
Outro ponto que merece atenção é o impacto que o tarifaço de Donald Trump gera nas bases do multilateralismo internacional e no sistema de comércio internacional. As taxas arbitrárias dispostas por essa medida estão fora do âmbito da Organizações Mundial do Comércio (OMC) e colocam em xeque alianças estratégicas dos Estados Unidos – não somente no campo econômico, mas também no campo geopolítico. Destaca-se que essa estratégia do republicano pode alienar aliados, realinhar a estratégia de outras nações e impulsioná-las a liderarem alternativas econômicas aos Estados Unidos. Dois exemplos importantes são a China e o bloco dos BRICS. A China, além de ser membro do BRICS, já é o principal parceiro comercial de várias nações – inclusive dos EUA – e está bem posicionada para explorar esse vácuo. Já o bloco dos BRICS, concebido como alternativa ao domínio econômico do norte global, concentra cerca de 41% da população mundial e 37% do PIB global, consolidando-se como força capaz de desafiar as regras lideradas pelo Ocidente.
Embora Trump afirme que o objetivo do tarifaço é a proteção dos trabalhadores estadunidenses, estudos revelam que os efeitos dessa política são limitados. O aumento de tarifas inicialmente estimula os negócios domésticos, mas leva a uma pressão nos preços. Atualmente, o cenário econômico internacional vive uma interdependência, de maneira que todos os países dependem do comércio com outras nações, em maior ou menor medida. Os Estados Unidos também dependem da importação de produtos primários para sua produção, de maneira que o aumento das tarifas pode levar a um aumento generalizado dos preços finais. Essa dependência ficou evidente nas semanas que antecederam o anúncio das tarifas, quando empresas estadunidenses enviaram mensagens à Donald Trump solicitando que seus concorrentes fossem taxados, mas não seus fornecedores – destacando a fragilidade dessa lógica protecionista.
Ignorando a oposição interna e as represálias provenientes das nações objeto de sua tarifação, Donald Trump ampliou ainda mais as tarifas para alguns países. Em muitos desses casos, sua decisão possui forte cunho político, mas não econômico. Exemplo evidente disso foi o que ocorreu com o Brasil após sediar a reunião dos BRICS. O ofício enviado ao presidente Lula apresentou argumentações que extrapolaram a real natureza da relação comercial entre os dois países. No documento, Trump afirmou que essa relação representava um déficit para os Estados Unidos. Porém, a divergência entre o discurso e os dados oficiais — que mostram um superávit comercial de US$ 253 milhões a favor dos EUA — evidencia o caráter político da medida, que se descola de fundamentos econômicos e se aproxima de uma diplomacia coercitiva, orientada por interesses ideológicos e eleitorais.
Ambiente de profunda imprevisibilidade
Os alvos mais recentes das controversas medidas de Trump foram a União Europeia e o México, tarifados em 30%. Assim como no caso brasileiro, os objetivos do republicano frente ao México apresentam forte inclinação política, dada a afirmação do presidente que sua decisão era consequência da crise dos opioides em solo estadounidense. O consumo ilegal de fentanil (analgésico sintético muito mais potente que a heroína) é o maior causador do aumento de mortes relacionadas a drogas nos EUA. Em carta enviada à presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, Donald Trump fez fortes alegações sobre os cartéis de drogas e o que ele classificou como a falha mexicana em lidar com a questão. Já em sua carta enviada à Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, o republicano afirmou haver a necessidade de reavaliação da relação comercial entre os dois atores, Estados Unidos e Europa, dado o déficit de US$ 235 bilhões na balança comercial dos Estados Unidos.
As novas tarifas aplicadas ao México e à União Europeia representam um novo ataque à ordem multilateral internacional, além de impactarem as Cadeias Globais de Valor (CGV). Ao elevar tarifas sobre insumos e bens intermediários, o governo dos EUA pressiona as empresas a reorganizarem suas operações para evitar os custos impostos pela tarifação. Isso pode levar à reconfiguração das CGVs, por meio de realocação produtiva, práticas de nearshoring ou diversificação de fornecedores — movimentos que, embora compreensíveis, reduzem a eficiência global da produção e aumentam a complexidade logística. O resultado é um ambiente comercial mais volátil, fragmentado e propenso ao protecionismo, com efeitos negativos tanto para a economia internacional quanto para a posição de liderança global dos Estados Unidos.
A retórica inflamada de Trump, caracterizada por anúncios inesperados e prazos alterados, gera um ambiente de profunda imprevisibilidade econômica e volatilidade nos investimentos. Esse desalinho dificulta o planejamento de longo prazo para empresas e governos, promovendo um ambiente instável que fragiliza mercados e reduz a confiança global. Nessa conjuntura, a necessidade do multilateralismo se torna ainda mais premente, visto que somente um sistema estável com regras compartilhadas pode reassentar as bases para uma cooperação segura e sustentável no comércio global. Sem essa estrutura, corre-se o risco real de fragmentação econômica, enfraquecimento do crescimento global e erosão da confiança entre nações.