A já célebre frase dita em inglês por Jair Bolsonaro no último domingo, 6 de abril, sobre “pipoqueiros e sorveteiros” estarem sendo julgados por golpe de Estado no Brasil não virou apenas meme na internet. Evidenciou mais um capítulo da estratégia do ex-presidente de reconfigurar a tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, de que é acusado, através de uma narrativa de vitimização. Trata-se de um movimento cada vez mais articulado, que abandona o terreno da disputa criminal objetiva e adota um discurso de negação, deslocando o foco: de réu acusado a perseguido político.
No fundo, Bolsonaro repete a fórmula que usara nas eleições, quando questionou o sistema eletrônico de votação e a imparcialidade dos ministros do TSE para que a população não aceitasse os resultados eleitorais e se insurgisse para invadir a Praça dos Três Poderes e precipitar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem ), estado de sítio ou de defesa. Desta vez, ele questiona as provas do processo (minuta do golpe, depoimento dos comandantes do exército e aeronáutica, minuta do golpe, plano Punhal Verde Amarelo, além das suas falas públicas no 7 de setembro de 2021 e 2022 e na reunião com os embaixadores), como questionava a urna; questiona a imparcialidade dos ministros do Supremo, como questionava a dos ministros do TSE durante as eleições; e estimula para que seus correligionários e eleitores não aceitem o resultado do seu julgamento, como fizera com o resultado das eleições, abrindo a porta novamente para que se insurjam contra essa nova “injustiça”.
No ato realizado no domingo passado em São Paulo, o ex-presidente voltou a afirmar que não houve tentativa de golpe. Alegou que foi ele, na verdade, o alvo de uma trama, uma ação coordenada contra sua candidatura e sua liberdade política. O Supremo, segundo Bolsonaro, teria atuado com parcialidade, tratando-o de maneira distinta em relação ao seu adversário, Lula da Silva.
Narrativa
A narrativa do ex-presidente reforça a tese de que as eleições de 2022 foram injustas, e que o sistema, tal como se apresentou, teria lhe negado um tratamento isonômico. Volta a questionar a rigidez do processo eleitoral, pedindo “contagem pública dos votos” e se apresenta como vítima de uma “mão pesada” dos Tribunais, não como protagonista de um levante antidemocrático.
É nesse contexto que surge o pedido de anistia, apresentado como gesto de pacificação nacional. Mas esse apelo, embora com aparência conciliatória, esconde um plano de autoproteção. Mais do que disputar eleições, Bolsonaro parece concentrado em evitar a prisão. Prova disso é que, nos seus discursos, ataca com mais ênfase ministros do STF do que o próprio governo Lula, colocando em dúvida a legitimidade de seus julgadores e preparando o terreno para descredibilizar eventuais sentenças condenatórias.
Esse movimento também se expressa em sua tentativa de construir uma base política que garanta apoio à anistia no Congresso. O “casting” de presidenciáveis da direita começou no domingo. A primeira tarefa foi o “beija-mão”, contando com sete governadores e outros aliados — com direito a manifestações de apoio, vídeos e discursos — que tem um claro objetivo: testar a lealdade de potenciais sucessores políticos a Bolsonaro e, ao mesmo tempo, garantir que, caso eleito, algum deles possa conceder-lhe um perdão presidencial. O ex-presidente parece imbuído em repetir a tática de Donald Trump, que ao retornar ao poder nos Estados Unidos prometeu perdão aos envolvidos na invasão do Capitólio.
Discurso calibrado
Com a assunção de um tom golpista nos atos, Bolsonaro evidencia ter jogado a toalha em seu processo judicial, possivelmente consciente que diante da avassaladora quantidade de provas que gerou contra si mesmo é impossível escapar da condenação. Por isso, deixa de lado o que deveria ser seu Plano A – buscar sua inocência – e começa a implementar seu plano B – conseguir uma anistia para seus crimes. Além do plano doméstico, seu Plano B tem uma dimensão internacional: o papel de embaixador-conspirador de seu filho Eduardo, que se mudou para os Estados Unidos para construir pontes com a extrema-direita americana, tentando convencer parlamentares republicanos a pressionarem o governo Trump para atacar o STF e Alexandre de Moraes. Ou, pelo menos, garantir o status de asilado político para que, antes de ser condenado e preso, Jair possa fugir para um retiro dourado embaixo das asas de Donald.
O discurso que ele adota — “não houve golpe”, “manifestações pacíficas”, “perseguição judicial” — é cuidadosamente calibrado. No entanto, acaba funcionando como uma confissão indireta. Quando um líder precisa reafirmar reiteradamente que “não houve golpe”, está, na verdade, respondendo a uma acusação tácita que já ganhou corpo na opinião pública e nas instituições. A negação, nesse caso, acaba por reafirmar a existência dos fatos.
A linha narrativa utilizada por quase todos presentes no ato para justificar a “perseguição” se basearam nos argumentos presentes no infame vídeo do jovem deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que comparara os golpistas de 8 de janeiro com a ativista negra norte-americana Rosa Parks, um símbolo da luta contra o racismo nos Estados Unidos.
Simbolismos
Primeiro, o uso de figuras simbólicas — como a chamada “moça do batom” — busca gerar empatia e relativizar os atos do 8 de janeiro. O argumento da eventual desproporcionalidade nas penas aplicadas é manipulado como justificativa para uma anistia ampla, que cobriria não só os insurretos da Praça dos Três Poderes, mas todos que conspiraram e urdiram a trama golpista depois das eleições até o levante golpista. A ideia é simples: transformar crimes contra a democracia em manifestações de direito à opinião.
Em seguida, Nikolas cria paralelos entre os condenados no 8 de janeiro. Compara réus primários, mães de família, que nunca fizeram mal a ninguém”, com políticos corruptos como Geddel Vieira, que teria contado com penas mais amenas que os “patriotas de bem”. Há também uma tentativa de criar paralelos forçados com outros movimentos sociais, por exemplo, comparando mobilizações anteriores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Esplanada dos Ministérios. Segundo Nikolas, são apenas “torcidas” de times diferentes que promoveram quebra-quebra.
Porém, a analogia ignora o elemento central: enquanto a “torcida” do MST promoveu quebra-quebra na “arquibancada”, a “torcida” bolsonarista “invadiu o campo”, planejou linchar e matar os jogadores adversários e o juiz da partida e se proclamar campeão eterno, ou seja, buscavam abolir violentamente o Estado Democrático de Direito por meio de um golpe de Estado.
Chantagem
O resultado desse discurso é a construção de uma atmosfera de chantagem institucional. Pressiona-se o Congresso Nacional, o STF, a opinião pública. As palavras de ordem agora são “pacificação”, “reconciliação”, “desprendimento”. O objetivo final é claro: transformar o debate sobre justiça e responsabilidade em uma questão de conveniência política.
Curiosamente, os ataques ao presidente Lula, em meio a tudo isso, são secundários. Chamam-no de “ladrão” e criticam a inflação, mas o foco principal é o STF — especialmente o ministro Alexandre de Moraes. O inimigo, nesse momento, não é o governo, mas a Justiça. No fundo, não há nada novo. Se Lula passou todo o processo da Lava Jato dizendo “sou inocente e vou provar nos tribunais”, a Bolsonaro nunca se escutou dizer que “era inocente” e que perseguiria sua “absolvição”, pelo contrário, vem há meses rogando por anistia, antes mesmo de ser condenado.
O que se vê é um esforço articulado para construir uma narrativa de injustiça histórica, humanizar os golpistas e pressionar os poderes da República a rever sua postura. Mais do que um plano para 2026, Bolsonaro parece jogar todas as suas fichas no presente: evitar condenações, se possível, receber o perdão antes mesmo da sentença final ou, pelo menos, conseguir um asilo político.