A aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto do Executivo que isenta de imposto de renda quem ganha até R$ 5 mil e amplia a alíquota do IR para os super-ricos, na semana passada, chama a atenção por alguns aspectos para um governo que é sabidamente minoritário no legislativo e enfrenta uma forte e aguerrida oposição do campo da direita e da extrema-direita.
O primeiro ponto a ser observado refere-se ao resultado da votação, com 100% dos deputados a favor da medida. O apoio unânime é pouco esperado para o governo Lula 3, que conta uma base parlamentar pequena e vive quase sempre a reboque da agenda da oposição, sobretudo o grupo bolsonarista. Ou seja, se alguém dissesse semanas antes que os deputados do PL (do ex-presidente Jair Bolsonaro), do PP (do senador Ciro Nogueira) e dos demais partidos do chamado Centrão, que costumam barganhar, e muito, cada voto, votariam a favor de uma proposta de campanha do presidente Lula, você provavelmente consideraria esse cenário improvável.
Mas há outros pontos fora dessa curva. Como demonstramos em um levantamento feito anteriormente, a Câmara dos Deputados se tornou uma fatia de super-ricos no Brasil. A média do patrimônio dos parlamentares eleitos em 2022 é de cerca de R$ 3 milhões. Comparativamente, o patrimônio médio de um deputado é 62 vezes maior que a média do patrimônio dos brasileiros. Esses dados sugerem que os representantes dos eleitores estão mais próximos dos interesses e dos círculos sociais dos brasileiros mais ricos do país. Portanto, se também dissesse semanas antes que os deputados ricos iriam taxar os brasileiros ricos e super-ricos, você, muito provavelmente, duvidaria.
# Interesses e círculo social de parlamentares
Do ponto de vista ideológico, a votação da isenção do IR também contraria o esperado. A média do patrimônio dos deputados federais é maior quanto mais à direita o partido do parlamentar. Isso significa que é mais provável um partido de esquerda votar para taxar do super-ricos do que uma legenda de direita, onde estão, em média, os deputados com mais patrimônio. Formada majoritariamente por parlamentares do campo da direita, o que se viu na Câmara, contudo, foi justamente a direita votando em peso a favor da taxação dos mais ricos e da isenção dos mais pobres.
Como é possível um governo minoritário, com forte oposição no Congresso, conseguir o apoio unânime, inclusive dos mais ricos, para sobretaxar os super-ricos e isentar de IR os brasileiros com menos renda? A proposta do IR de fato tem grande apelo popular, especialmente em um ano pré-eleitoral, mas será que essa característica em si explica a unanimidade dos deputados? Provavelmente não. É preciso ampliar a lente e examinar a votação segundo a conjuntura política que antecedeu a discussão do IR na Câmara.
Mais ou menos duas semanas antes de abraçar a isenção do IR, a Câmara havia aprovado a chamada PEC da Blindagem. A medida, que dificultava que parlamentares enfrentassem processos judiciais, foi duramente criticada por analistas, imprensa e a sociedade civil organizada, que foi para ruas dia 21/09 e cobrou a derrubada da proposta.
A situação pirou ainda mais para os deputados quando o Senado, três dias depois das manifestações, enterrou a PEC, deixando o ônus político exclusivamente nas mãos do presidente Hugo Motta (PB-Republicanos) e dos demais líderes da Casa. Era preciso fazer alguma coisa, pois 2026, ano eleitoral, é logo ali.
De inimiga a amiga do povo
Estavam criadas, portanto, as condições para a aprovação de medidas de forte apelo popular, e é aí que a isenção do IR para os mais pobres e o governo minoritário se encontram. A Câmara trabalhou para mudar a agenda e buscar uma pauta positiva. “Da Câmara inimiga do povo” deveria surgir a “Câmara ao lado do povo”.
É nesse cenário também que a oposição bolsonarista, o campo da direita e o Centrão encontram Lula. Havia uma compreensão de que a proposta do IR era jogo jogado. Desde que a medida foi apresentada, os deputados sabiam que o presidente Lula sairia vencedor nessa agenda. Não votar a isenção do IR; votar e derrotar o governo ou votar e aprovar a medida, nos três cenários, o presidente ganharia, como ganhou, um discurso de alguém que busca reduzir o IR dos mais pobres e aumentar o imposto para os mais ricos.
Em resumo, em um contexto desfavorável, a Câmara abraçou a proposta popular do presidente, e Lula levou não porque tinha os votos de 100% da Câmara, mas porque a conjuntura elevou os custos para os deputados, e eles decidiram não perder novamente. O nome disso é pragmatismo político.
Esse enredo demonstra como é arriscada, para não dizer, equivocada, a hipótese de que Lula 3, que vem melhorando sua popularidade, talvez tenha virado o jogo, tornando-se majoritário no Congresso Nacional. Foi a conjuntura política, aliada ao pragmatismo eleitoral dos parlamentares, a principal razão da aprovação por unanimidade da medida do IR. Amanhã, Lula 3 continuará minoritário, o bolsonarismo manterá seu oposicionismo aguerrido, e o Centrão estará calculando quando é a hora de ser governo, e quando é mais vantajoso não ser.
Esta análise foi produzida e publicada com apoio do INCT ReDem – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Representação e Legitimidade Democrática, financiado pelo CNPq.