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Análise: Discursos de Lula e Trump refletiram visões opostas sobre o futuro da ordem internacional

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Análise: Discursos de Lula e Trump refletiram visões opostas sobre o futuro da ordem internacional

Um dos aspectos mais relevantes evidenciados por uma análise dos discursos do norte-americano Donald Trump e do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, ambos na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em setembro, é que as falas configuram dois mapas para o mundo. Um verdadeiro espelhamento de visões sobre o sistema internacional.

A fala do presidente Lula, no dia 22, representou uma intervenção de grande impacto no cenário internacional, ao recolocar a democracia, o multilateralismo e o desenvolvimento sustentável no centro do debate global.

O discurso foi dirigido a todas as nações — grandes potências, potências médias ou regionais, desenvolvidas ou em desenvolvimento, do Sul ou do Norte Global, seja qual definição se adote — sublinhando que os desafios contemporâneos transcendem fronteiras e exigem respostas coletivas.

Ao enfatizar tanto a defesa de princípios universais como a necessidade de uma autocrítica democrática diante do avanço da extrema-direita, Lula projetou uma mensagem que dialoga simultaneamente com os dilemas internos das sociedades e com a arquitetura internacional. A recepção positiva por parte de diversos líderes mundiais indica que sua intervenção encontrou ressonância em um momento de crise de legitimidade das instituições multilaterais e de crescente fragmentação da ordem mundial.

Trump, por sua vez, reafirma uma leitura próxima ao Realismo, em que o mundo é marcado pela anarquia, pela desconfiança entre Estados e pela competição permanente por poder. Ao mesmo tempo, seu discurso incorpora elementos da geoeconomia: tarifas, sanções e restrições deixam de ser medidas de regulação de mercado e passam a ser usadas como instrumentos de pressão política com fins geopolíticos — isto é, para influenciar o comportamento de outros países e preservar a hierarquia internacional.

Esse nacionalismo econômico se materializa em episódios concretos, como a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, afetando até 36% das exportações do país para os Estados Unidos. A medida evidencia como instrumentos comerciais, que em princípio deveriam servir à proteção da indústria doméstica, foram empregados como mecanismos de pressão política e de contenção de parceiros e rivais, reforçando a lógica de demonstração de força. Outro exemplo é a guerra comercial com a China, marcada pela imposição de tarifas bilaterais em larga escala, ou ainda as restrições impostas ao acesso chinês a semicondutores e tecnologias de ponta.

Cooperação em cenários de rivalidade

Todos esses episódios revelam a economia transformada em extensão do poder geopolítico, utilizada não apenas para assegurar vantagens econômicas, mas também como instrumento de coerção. Em última instância, trata-se de um Realismo fortalecido pela lógica geoeconômica: o uso deliberado de tarifas, sanções e controles tecnológicos como armas políticas e militares destinadas a preservar a posição norte-americana, mesmo que impondo custos a aliados e tensionando cadeias globais de valor.

Lula, por sua vez, apresenta uma visão quase oposta, mais próxima ao Liberalismo. Ao defender a ONU, a democracia e a sociedade civil organizada como pilares da vida internacional, ele sugere que problemas globais — como desigualdade, mudanças climáticas, fome ou regulação do espaço digital — não podem ser enfrentados pela lógica da soma zero, mas apenas por meio de soluções coletivas.

Seu discurso remete a experiências em que a cooperação foi possível mesmo em cenários de rivalidade. O Acordo de Paris de 2015 é emblemático: países com interesses divergentes, incluindo Estados Unidos, China e União Europeia, estabeleceram compromissos comuns contra a crise climática. Em escala regional, o Acordo Comercial entre o Mercosul e a União Europeia, ainda em andamento devido a negociações pontuais e à ratificação pelos Estados-membros europeus, também ilustra essa postura. Ao participar das tratativas, o Brasil demonstra que potências médias podem articular consensos entre blocos regionais com interesses distintos, mitigando tensões e ampliando espaços de convergência.

Esse engajamento reforça que cooperação e multilateralismo não são apenas ideais normativos, mas instrumentos pragmáticos de estabilidade e de ampliação da autonomia de países emergentes diante de um sistema internacional competitivo. O contraste entre os dois discursos se torna ainda mais claro quando observamos como cada líder interpreta a economia internacional. Para Trump, cadeias de suprimento, fluxos comerciais e tecnologias críticas são armas de contenção contra rivais — como ficou evidente ao pressionar aliados a restringirem a Huawei no 5G.

Lula, ao contrário, interpreta esses elementos como bens compartilhados, que devem ser regulados por normas multilaterais, defendendo uma ordem inclusiva que reduza assimetrias e amplie a autonomia de países emergentes. Seu discurso, portanto, é pragmático: reconhece a disputa geoeconômica, mas alerta que apenas instituições multilaterais fortes podem impedir que a competição descambe para conflitos irreversíveis.

O risco de repetir os erros do passado

Esse espelhamento, quando ampliado para a análise histórica, ganha contornos ainda mais preocupantes. O clima atual guarda semelhanças com o período entreguerras e com os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, quando a combinação de desconfiança, nacionalismos exacerbados e erosão institucional pavimentou o caminho para conflitos de larga escala. O discurso de Trump ecoa esse cenário ao reforçar a lógica da rivalidade sistêmica e da contenção de potências ascendentes, como China e Índia.

Por outro lado, Lula atua como contraponto e alerta: sem cooperação, sem respeito às soberanias nacionais e sem canais de diálogo, o risco é que o mundo caminhe inexoravelmente para uma guerra de dimensões ainda maiores — não apenas militar, mas também marcada pela intensificação da “guerra econômica”, com tarifas, sanções e restrições tecnológicas operando como armas.

Em suma, o discurso de Lula não se limitou a reafirmar valores como democracia e multilateralismo em nível declaratório. Ele apontou esses princípios como ferramentas de ação prática, mostrando que devem ser usados para enfrentar desafios concretos — do avanço da extrema-direita à crise climática e à rivalidade entre grandes potências. Nesse sentido, sua fala assume um caráter orientador: mais do que expressar ideais, oferece direções para que o Brasil e a comunidade internacional evitem repetir os erros do passado e avancem na construção de soluções coletivas em um mundo cada vez mais dividido.

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