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Análise: Itamaraty orientou países a deixarem de falar em desdolarização e encontro do BRICS perdeu relevância

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Análise: Itamaraty orientou países a deixarem de falar em desdolarização e encontro do BRICS perdeu relevância

No início do ano, publiquei um artigo sobre como a escalada tarifária dos EUA era uma oportunidade para o processo de desdolarização, rumo a uma nova ordem multipolar liderada pelo BRICS. Argumentei que, ao utilizar tarifas como instrumento de coerção econômica, os EUA estavam estimulando a busca de alternativas por parte das economias emergentes. O uso arbitrário do dólar como arma política instigava países a fortalecerem sistemas próprios de pagamento, ampliar acordos bilaterais e investir em instituições financeiras alternativas. O enfraquecimento da confiança no dólar, combinado com uma crescente interdependência entre economias do Sul Global, abria espaço para uma reorganização do sistema internacional, e que a Cúpula do BRICS em 2025, sob presidência brasileira, poderia surgir como um marco para essa transição.

Não foi o que aconteceu. Deliberadamente apressada, a presidência brasileira do BRICS preparou uma Cúpula modesta em acordos multilaterais. Ao longo do ano, apresentou eventos reduzidos no escopo da agenda institucional, e poucas atividades no escopo da Diplomacia Pública.

A diplomacia pública, aqui, refere-se às iniciativas voltadas à construção de legitimidade e engajamento internacional que extrapolam os canais formais entre governos, incluindo aí universidades, centros de pesquisa, empresas, sindicatos, organizações da sociedade civil e iniciativas culturais. No Brasil, a sociedade civil tem mostrado disposição para esse tipo de engajamento e, mais que isso, manifesta preferência clara por uma aproximação com o BRICS em detrimento dos Estados Unidos. Segundo o relatório Latam Pulse, por exemplo, o Brasil é o único país da amostra em que o BRICS aparece como principal referência de alinhamento internacional preferido, inclusive à frente dos EUA. Nesse mesmo sentido, a China também é o parceiro comercial preferido dos brasileiros.

No entanto, faltou apoio institucional concreto – bem como vontade política – para a promoção de eventos que partissem da sociedade civil. Diversos grupos interessados em contribuir com debates sobre tecnologia, soberania digital, comércio em moedas locais e cooperação Sul-Sul esbarraram em silêncio ou obstáculos administrativos. Em vez de abrir as portas da Cúpula para a sociedade, a presidência optou por um modelo fechado, vertical, apressado e pouco responsivo, desperdiçando a chance de consolidar uma base social de apoio à transição Multipolar. Isso se deu por um motivo claro: a preocupação com os Estados Unidos, que levou o Itamaraty a pedir que se parasse de falar do BRICS como artífice de um movimento de desdolarização da economia mundial.

Previsão de fortalecimento institucional do bloco não aconteceu

A agenda central da presidência brasileira do BRICS, inicialmente, era o fortalecimento institucional do bloco. Mas isso não aconteceu. Ao longo dos eventos contidos na agenda da presidência, foram celebrados apenas Memorandos de Entendimento de escopo reduzido, e nenhum Acordo Multilateral.

Memorandos são menos vinculantes do ponto de vista jurídico. Não geram obrigações legais firmes entre as partes, e servem mais como sinalizações de intenção do que como compromissos executáveis. Ao contrário dos Acordos Multilaterais, que exigem ratificação e implicam deveres formais, os memorandos podem ser ignorados sem consequências legais concretas.

Por exemplo: em 2014, também sob a presidência brasileira do BRICS, foram firmados acordos importantes, que fundaram o New Development Bank (NDB), o “Banco do BRICS”, e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), um mecanismo de reserva monetária multilateral com capital inicial de 100 bilhões de dólares, visando segurança cambial mútua entre os países membros. A partir destes acordos celebrados há 11 anos, o BRICS passou a contar com instrumentos jurídicos robustos e institucionalizados, capazes de operar com autonomia financeira e impacto direto nas economias dos países membros. Nada desta magnitude está sendo celebrado agora em 2025.

É perdoável que, no âmbito dos Conselhos de Juventude do BRICS (BRICS Youth Summit), que reúne autoridades de governo e integrante da sociedade civil, sejam celebrados memorandos ao invés de acordos. Afinal, tratam-se de iniciativas incipientes e voluntárias. No Conselho de Juventude do BRICS deste ano, foi assinado o Memorando de Entendimento e Cooperação em Matéria de Juventude, que não dá origem a compromissos legais ou fundo comum para financiar projetos juvenis reais.

No âmbito da educação e do desenvolvimento técnico-científico, a Carta da Aliança de Cooperação em Educação Técnica e Profissional (BRICS-TCA) permaneceu só no campo da boa vontade enquanto declarava expressamente que “não cria obrigações legais entre os países membros”. Chama a atenção o fato de esta iniciativa em particular ser liderada por instituições técnicas e coordenada por Ministros da Educação, mas mesmo assim ter permanecido apenas no campo da cooperação voluntária. Sem status jurídico internacional, sem orçamento comum e sem garantia de implementação.

Fórum parlamentar esvaziado

No entanto, o mais preocupante exemplo de esvaziamento institucional da presidência do Brasil no BRICS foi o 11º Fórum Parlamentar do BRICS, celebrado mês passado em Brasília. Espaço estratégico em que legisladores dos países membros podem alinhar agendas, harmonizar propostas regulatórias e construir a base legal necessária para transformar decisões diplomáticas em políticas públicas, o fórum produziu apenas um superficial memorando de entendimentos, e nenhum acordo.

Perdeu-se, ali, mais uma oportunidade de formalizar compromissos legislativos conjuntos, criar comissões temáticas permanentes ou mesmo avançar em diretrizes comuns sobre regulação digital, segurança energética e moedas locais. Novamente, a presidência brasileira desperdiçou o momento político ideal para dotar o Fórum Parlamentar de peso institucional real.

Além disso, os projetos com o NDB foram reduzidos. A despeito da confiança atribuida à Dilma Roussef, atual presidente do banco, pouco foi feito no contexto da presidência brasileira. Embora o destaque financeiro da cúpula deste ano seja o lançamento do fundo multilateral destinado a impulsionar investimentos nos países membros e convidados do BRICS, sua implementação dentro da estrutura do NDB foi uma iniciativa técnica que já havia sido aprovada anteriormente, e não reflete projetos assinados ou financiamentos adicionais impulsionados pela agenda brasileira.

Isso demonstra uma posição do Ministério das Relações Exteriores do Brasil de contenção e reorientação da agenda do BRICS para uma atuação discreta, previsível e esvaziada estrategicamente. Internamente, houve vetos explícitos à linguagem da desdolarização. A diretriz foi clara: não tensionar a arquitetura financeira internacional vigente, manter o BRICS como um fórum de enunciação e não de transformação, e evitar compromissos formais que pudessem contrariar interesses externos.

A influência dos EUA

Tudo isso tem relação direta com a presidência de Donald Trump. Trata-se de um posicionamento cauteloso diante de um vizinho poderoso e instável. Minimizando as declarações incendiárias do presidente estadunidense, o Itamaraty adotou uma postura tímida, evitando confrontos retóricos. Mesmo diante de provocações diretas, como a do Secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth, que ameaçou a América Latina ao dizer que os EUA iriam recuperar o seu quintal, o Brasil optou por adotar uma postura branda.

Essa escolha reverberou internamente. O Ministério das Relações Exteriores instruiu outras pastas a moderar o tom, interromper discussões sobre desdolarização e manter a presidência brasileira do BRICS dentro de um formato mais protocolar. Preferiu-se não desagradar, mesmo que o custo fosse abrir mão de protagonismo e limitar o espaço para uma atuação autônoma.

O resultado foi uma presidência apressada, hesitante e incapaz de dar respostas à altura dos desafios geopolíticos colocados. O tarifaço imposto pelos Estados Unidos, que atingiu em cheio o aço e o alumínio brasileiros, não gerou qualquer reação coordenada por parte do bloco. E a despeito de rumores de bastidores, de que haveria disposição entre os membros para uma resposta conjunta do BRICS contra o tarifaço de Trump, nada foi formalizado. Nenhuma resolução política, nenhum acordo estratégico, nenhum gesto público.

O silêncio foi ensurdecedor, e a ausência de uma posição, reveladora. Em vez de liderar, o Brasil assistiu. Em vez de articular, evitou. E, ao final de seu turno à frente do BRICS, o que restou foi uma presidência marcada não por transformação, mas por contenção. Não por visão, mas por temor. Não por soberania, mas por subordinação.

O momento de reorganização do sistema internacional estava à disposição mas, diante dele, o Brasil se calou. E nessa cúpula cujo ápice será o encontro de líderes na semana que vem – também já esvaziado pela ausência confirmada de Xi Jinping, Vladimir Putin e Masoud Pezeshkian, presidente do Irã – o Brasil parece ter perdido a chance de liderar o mundo rumo a uma nova ordem multipolar.

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