Provocado a deliberar sobre dois recursos envolvendo o Facebook e o extinto Orkut, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade de parte do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Esse artigo estabelece que as plataformas digitais só podem ser responsabilizadas civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se não removerem tal conteúdo após o recebimento de uma ordem judicial específica. No novo entendimento da Corte, os provedores podem ser responsabilizados se não agirem de forma imediata e proativa para retirar conteúdos que configurem a prática de crimes graves.
No entanto, a exigência de “indisponibilização imediata de conteúdos que configurem a prática de crimes graves” transfere para entes privados o ônus de uma decisão essencialmente jurídica – sem que tenha havido qualquer processo com contraditório, análise de dolo ou garantia de ampla defesa da parte afetada. Embora em alguns casos a tipificação criminal possa parecer evidente, em muitos outros ela dependerá de uma avaliação mais cuidadosa. Em qualquer cenário, porém, torna-se mais simples remover o conteúdo, mesmo sem uma análise cuidadosa, do que enfrentar um processo judicial.
Embora a decisão do STF busque de certa maneira contornar a morosidade do Judiciário – o que chama atenção, considerando que os casos relacionados ao Facebook e ao Orkut tratam de fatos ocorridos em 2014 e 2010, respectivamente –, enquanto o Congresso Nacional não editar uma nova lei sobre o assunto, as redes sociais poderão ser responsabilizadas com base apenas em notificações extrajudiciais. Em um país onde cerca de dois terços da população apresentam níveis de analfabetismo funcional ou alfabetismo elementar, esse período de transição pode abrir espaço para formas difusas de censura, em que a simples denúncia pode ser suficiente para a remoção de conteúdos, sem a devida mediação judicial.
Esse risco se agrava quando se considera, além da dificuldade generalizada de interpretação de texto, a atuação coordenada de turbas raivosas, dispostas a mobilizar denúncias em massa para remover conteúdos que consideram indesejáveis – ainda que esses conteúdos não configurem crime algum, mas apenas causem desconforto pessoal ou contrariem convicções subjetivas. Esse cancelamento digital já ocorre atualmente, com perdas de empregos e patrocínios, mas sem uma implicação jurídica automaticamente vinculada às manifestações.
Embora não seja um direito absoluto, a liberdade de expressão deve ser protegida por meio de análises rigorosas e critérios consistentes. O judiciário, longe de ser uma ciência exata, tem gerado questionamentos pela população por conta de atitudes diferentes para situações semelhantes, mostrando que decisões subjetivas podem sempre ser moldadas de acordo com algum ‘entendimento, trazendo uma insegurança jurídica que deve ser considerada ao se defender uma regulação que pode facilmente funcionar como censura.
Não é difícil imaginar, portanto, que interpretações sobre o conteúdo das postagens possam ser fortemente enviesadas pela inclinação política de quem estiver encarregado do julgamento. A facilidade com que se denuncia um conteúdo, muitas vezes com um simples clique, torna ainda mais vulneráveis manifestações que desagradam determinados grupos organizados. Tentar normatizar a sensibilidade individual, agregando uma agilidade duvidosa, sobretudo em espaços diversos e pluralistas como as redes sociais, tende a gerar mais distorções do que soluções.
É preciso lembrar que a maioria dos crimes cometidos virtualmente já está prevista na Constituição e no Código Penal. Nesse contexto, desconsiderando a notória lentidão da Justiça, uma medida regulatória eficaz seria a proibição de perfis anônimos. Com a devida identificação de quem publica, qualquer cidadão poderia acionar a Justiça diretamente contra o autor da infração. Responsabilizar as plataformas digitais pelo conteúdo de terceiros, por outro lado, abre um precedente perigoso, pois aproxima-se de punir o mensageiro em vez do emissor, e cria uma lógica que, com algumas adaptações, poderia ser estendida indevidamente à imprensa.
O impulso de criar leis e regras que dificilmente atingem os objetivos para os quais foram concebidas – uma prática recorrente em todos os setores institucionais do país – dá razão à análise de Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico “Raízes do Brasil”. De acordo com o sociólogo, o brasileiro tende a “acreditar que a letra morta pode influir por si só e de modo enérgico sobre o destino de um povo. A rigidez, a impermeabilidade, a perfeita homogeneidade da legislação parecem-nos constituir o único requisito obrigatório da boa ordem social. Não conhecemos outro recurso.”