As manifestações em 27 capitais no país no domingo (21/09) contra a PEC da Blindagem e a discussão sobre a anistia para os acusados de tentativa de golpe de Estado surtiram efeito. Na quarta-feira (24/09), o Senado Federal rejeitou a PEC aprovada pela Câmara dos Deputados por 353 votos.
Apesar da vitória da sociedade civil organizada e de o presidente Lula afirmar que a proposta “era uma vergonha nacional”, é muito provável que boa parte dos deputados federais que votaram a favor da medida seja reeleita em 2026.
Mas como é possível isso?
A contradição entre a reprovação popular dos parlamentares e a reeleição é um dos temas examinados pela Ciência Política brasileira há quase 20 anos. As evidências sugerem que o voto em medidas impopulares não produz, necessariamente, derrota eleitoral. O modelo eleitoral para a disputa de cargos proporcionais é a principal explicação para essa contradição. Isto porque a percepção dos benefícios locais exerce um peso importante na decisão do voto do eleitor.
Em 2007, por exemplo, os pesquisadores Carlos Pereira, Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília (UNB), mostraram que a execução integral das emendas parlamentares poderia aumentar em 25% as chances de reeleição de um deputado na disputa de 1998. Ou seja, a capacidade do parlamentar de entregar resultados concretos para sua base tem um impacto mais direto do que um voto em uma reforma de longo alcance e impopular.
Dez anos depois, o autor Pedro Fernando Nery voltou a confirmar essa hipótese. Em seu estudo, ele demonstrou que 69% dos deputados que votaram a favor da Reforma da Previdência do Governo Fernando Henrique Cardoso, em 1998, conseguiram se reeleger.
Modelo brasileiro estimula voto personalista
A resposta para essa contradição, na visão do cientista político Jairo Nicolau (FGV), combina dois fatores centrais da nossa política: o tipo de voto que prevalece nas eleições proporcionais de lista aberta e o alto custo que o eleitor tem para se manter informado sobre o desempenho de seus representantes.
O custo informacional implica tanto nas barreiras financeiras ou de fontes confiáveis como nas dificuldades cognitivas que o eleitor médio precisa enfrentar para acompanhar o volume de atividades dos deputados, além de questões, muitas vezes complexas, em votação no Congresso. Durante a campanha, esse custo se traduziria também nas dificuldades de identificar, entre milhares de candidatos, aquele que o eleitor considera que mais se alinha às suas expectativas.
Nesse contexto, o modelo de lista aberta tem papel determinante. O eleitor tende a votar no candidato e não na lista partidária, característica que, segundo Nicolau, estimularia tanto a competição intrapartidária como o voto personalista, isto é, aquele nos quais os atributos pessoais tem mais peso.
Por outro lado, para ampliar as chances eleitorais, os candidatos buscam estratégias de campanha focadas em seus atributos pessoais, minimizando ainda mais a importância do partido. É um modelo, portanto, que tende a reduzir o “controle eleitoral da representação”.
O voto retrospectivo e a falha da memória
Para que o eleitor exerça o controle democrático — premiando o deputado com a reeleição ou punindo-o com a derrota —, ele precisa do chamado elemento retrospectivo: lembrar e avaliar o desempenho do parlamentar.
O problema é que a maioria dos eleitores não se lembra em quem votou poucos dias após a eleição e, além disso, acompanha pouco o trabalho dos deputados devido ao alto custo informacional.
Há evidências de que esse problema persiste. O dado mais recente mostra que sete em cada dez eleitores não sabem em que votaram para deputado federal. Pior, à medida que se distancia do ano da eleição, menores são as chances de a pessoa lembrar em quem votou.
Nessa perspectiva, o eleitor teria uma forma de reduzir o custo informacional focando no desempenho dos partidos. Contudo, como a ênfase das campanhas é nos atributos individuais, a ligação partidária, no Brasil, é baixa ou insuficiente para ampliar o controle da representação.
Quatro modelos de voto e a prevalência do não-retrospectivo
A partir da combinação entre voto personalista/partidário e a exigência de voto retrospectivo/não-retrospectivo, Nicolau delineia quatro tipos que ajudam a entender por que a maioria dos eleitores tem dificuldade em “punir” um deputado que, supostamente, vota contra seus interesses:
O modelo que tende a prevalecer na eleição de lista aberta é o Personalizado e Não-Retrospectivo. Para o candidato, é muito mais vantajoso concentrar sua campanha em benefícios tangíveis levados ao seu reduto eleitoral, geralmente via emendas, do que tentar explicar os complexos e distantes benefícios de uma reforma da Previdência ou justificar um voto controverso como no caso da PEC da Blindagem.
Mesmo que o voto na PEC seja usado por adversários para atacar o parlamentar, o voto retrospectivo punitivo só ganha peso em grupos específicos de eleitores , aqueles que se envolveram diretamente no debate e para quem os efeitos da medida são mais evidentes. Para a maioria, o que se vê e sente no dia a dia, como uma obra ou serviço conseguido pela emenda, fala mais alto.
Ou seja, a dificuldade do eleitor em exercer o controle retrospectivo, somada ao incentivo da lista aberta para o personalismo, torna o custo eleitoral de um voto impopular administrável para a maioria dos deputados.
O modelo proposto por Nicolau, embora considere a questão do custo informacional, continua, a meu ver, bastante atual, mesmo com as mudanças no ambiente de comunicação. Se a comunicação digital reduziu os custos de acesso direto à representação política, ela também gerou mais incentivos para campanhas hiper-personalistas.
Os parlamentares utilizam hoje uma comunicação pouco mediada com seus eleitores, tendo na palma da mão não apenas um termômetro do que pensam os seus eleitores, mas, sobretudo, meios de reforçar continuamente laços e identificação.
Nesse sentido, a redução do custo informacional que, pelo modelo ampliaria as chances do controle representativo, paradoxalmente, no ambiente digital, estaria também produzindo mais, e não menos personalização do voto. Adicione a esse modelo o fato de que o candidato a deputado federal precisar de apenas uma fração dos votos (segmento) para ser eleito, diferentemente do voto majoritário, no qual o competidor precisa chegar a uma ampla massa de eleitores.