Em dezembro de 2024, após mais de vinte anos de negociações intermitentes, a União Europeia e o Mercosul assinaram um acordo comercial de grande alcance, considerado histórico pelosdois blocos. No entanto, aassinatura foi apenas o início de uma nova e delicada fase: a ratificação pelos parlamentos nacionais e peloParlamento Europeu. Nas últimas semanas, Bruxelas tem intensificado sua ofensiva diplomática para acelerar esse processo, apresentando-o comourgente e inevitável. Porém, essa pressão não deve intimidar os países do Mercosul. A União Europeia já não é a potência coesa e autônoma de décadas atrás; trata-se de um bloco em franco declínio estratégico, econômico e político, o que muda por completo a balança de forças.
Até 2022, a economia europeia dependia profundamente da Rússia, sobretudo no fornecimento de gás natural barato, elemento vital para acompetitividade industrial de países como a Alemanha.A guerra na Ucrânia rompeu abruptamente essa relação. Sob forte influência de Washington, a UE adotou sanções severas contra Moscou e abandonou o gás russo, substituindo-o por importações mais caras vindas dos Estados Unidos e de outros fornecedores. Essa transição elevou os custos de produção, mergulhou vários países na recessão edeixou a Europa mais vulnerável a crises externas. Em outras palavras, a dependência que antes era da Rússia passou a ser dos Estados Unidos — só queem condições muito mais onerosas para o continente europeu.
Esse enfraquecimento ficou evidente no recente acordo comercial entre a UE e os Estados Unidos. Pelos termos negociados,os produtos norte-americanos entrarão livremente no mercado europeu, enquanto as exportações europeias enfrentarão uma tarifa fixa de 15% ao entrar nos EUA. Além disso,Bruxelas se comprometeu a comprar hidrocarbonetos americanos no valor de 700 bilhões de euros e a investir outros 550 bilhões na economia norte-americana. Muitos analistas compararam esse tratado aos“tratados desiguais” impostos à China no século XIX. A diferença é que, desta vez, a submissão europeia não resulta de uma derrota militar, mas de uma escolha política.
Com isso, a União Europeia se distancia ainda mais de uma posição de autonomia e se aproxima de umpapel subordinado na geopolítica global. Aguerra na Ucrânia, longe de unir o continente,expôs divisões internas e isolou a UE de outras regiões, como a Ásia, a África e a América Latina.Sua base industrial está em erosão, enquanto megafundos norte-americanos e empresas globais adquirem ativos estratégicos europeus a preços reduzidos. AEuropa, portanto, deixou de ser protagonista e passou a depender de atores externos para garantir sua estabilidade.
É justamente por causa dessa fragilidade queo acordo com o Mercosul é vital para Bruxelas. Ao abrir o mercado sul-americano para produtos e investimentos europeus,a UE busca compensar parte de suas perdas globais e conter a influência crescente de potências como a China e os Estados Unidos na região. O Mercosul, por sua vez, detémrecursos estratégicos — do agronegócio ao lítio e a minerais críticos — que despertam enorme interesse internacional.
No entanto, a assinatura do tratado não significa que tudo esteja decidido. A etapa de ratificação parlamentaré a última oportunidade para os países do Mercosul avaliarem cuidadosamente os termos do acordo e, se necessário, renegociarem pontos cruciais. Uma vez ratificado,o tratado será juridicamente vinculante, limitando a margem de manobra da região por décadas. Bruxelas sabe disso e, por isso, aumenta a pressão para uma aprovação rápida,buscando impedir um debate profundo sobre os impactos de longo prazo.
A narrativa europeia se baseia na urgência, mas a realidade é que a UE precisa muito mais do tratado do que o Mercosul.Em um mundo cada vez mais multipolar, os países sul-americanos têm alternativas estratégicas. A China continúa ampliando suas parcerias na região, os Estados Unidos mantêm forte presença econômica, e blocos emergentes, como o BRICS Plus,oferecem novas oportunidades de cooperação. Esse cenáriodá ao Mercosul poder de barganha para não aceitar imposições que comprometam sua soberania ou limitem suas políticas de desenvolvimento industrial.
O conteúdo do acordo traz desafios significativos. Questões como subsídios agrícolas europeus, exigências ambientais que podem funcionar como barreiras não tarifárias e regras sobre propriedade intelectual precisam ser analisadas com rigor. Sem isso, há risco de que setores produtivos sul-americanos, especialmente a indústria, fiquem emdesvantagem estrutural. Além disso, algumas cláusulas podemrestringir a capacidade dos governos de implementar políticas públicas voltadas à inovação e à sustentabilidade.
O Brasil, maior economia do Mercosul, tem papel decisivo nessa etapa. Sua posição influenciará diretamente as decisões de parceiros como Argentina, Uruguai e Paraguai. Por isso,o debate no Congresso brasileiro precisa ser transparente e fundamentado, considerando não apenas os benefícios imediatos, mas também os impactos de longo prazo para a sociedade e a economia.
Resistir à pressão europeia não significa rejeitar a integração ou o comércio internacional. Significa, antes de tudo, reconhecer que a atual fragilidade da União Europeia oferece umarara oportunidade de negociar em condições de maior equilíbrio. Se a Europa precisa desesperadamente desse acordo, o Mercosul deve usar essa vantagem para proteger seus interesses estratégicos e evitar compromissos que possam limitar seu futuro.
A ratificação do tratado não pode ser tratada como mera formalidade burocrática. Trata-se de uma decisão histórica que moldará o papel da América do Sul na economia global nas próximas décadas. Em vez de se deixar intimidar pela narrativa de urgência,os países do Mercosul devem reafirmar sua soberania e sua capacidade de escolha, mostrando quea nova ordem internacional não é mais definida apenas em Bruxelas ou Washington, mas também em Brasília, Buenos Aires, Montevidéu e Assunção.
A União Europeia já não é o farol da economia global, mas um continente em busca de relevância. Cabe ao Mercosul compreender essenovo cenário e agir com firmeza, transformando a pressão externa em oportunidade para fortalecer sua posição no mundo multipolar que se desenha.