Uma jovem brasileira vai estudar na Espanha e, de repente, começa a sentir dificuldades para dormir, crises de choro e uma constante sensação de apreensão. Preocupada, procura atendimento psicológico. Em consulta, ela preenche questionários para avaliar sintomas de ansiedade e depressão. Mas será que essas perguntas — validadas em outro contexto cultural — captam o que ela está realmente sentindo? Isso leva a outra pergunta importante: como funcionam essas comparações internacionais que dizem, por exemplo, qual país tem a população mais ansiosa?
Essas perguntas são cada vez mais relevantes diante do crescimento global dos transtornos de saúde mental, em grande parte impulsionado pela pandemia de COVID-19. Segundo o Relatório Mundial de Saúde Mental, mulheres e jovens adultos estão entre os grupos mais afetados. Portanto, é importante que os instrumentos para medir sintomas e acompanhar a evolução dos casos sejam confiáveis e comparáveis.
De onde vêm esses questionários?
Os conceitos de ansiedade e depressão evoluíram muito com o tempo, desde a época de Hipócrates, no século V a.C. Atualmente, a principal referência é o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), que é revisado periodicamente. Ele divide esses transtornos em diversos tipos.
Uma característica comum entre os transtornos depressivos é o humor triste, vazio ou irritável, junto a sintomas cognitivos e corporais. O tipo mais clássico é Transtorno Depressivo Maior, que persiste por pelo menos duas semanas e afeta o funcionamento da pessoa em várias áreas da vida, como no trabalho, estudos ou relacionamentos. Já os transtornos de ansiedade são associados ao medo e preocupação exagerados, persistentes e difíceis de controlar, muitas vezes acompanhados de sintomas físicos, como palpitações, sudorese e falta de ar.
Com base nesses critérios, o psiquiatra Aaron Beck desenvolveu dois questionários: o Inventário de Depressão de Beck (BDI-II) e o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI), nas décadas de 60 e 80, que também são revisados e adaptados ao longo do tempo. Cada um tem 21 perguntas e versões traduzidas em diversas línguas. São os mais usados mundialmente, tanto em contextos clínicos quanto em pesquisas populacionais. Mas, apesar de muito úteis, são mesmo comparáveis?
Como os questionários são adaptados e avaliados
Para importar qualquer instrumento psicológico desenvolvido em outro país, não basta apenas traduzir as perguntas. É preciso verificar se ele mede os sintomas da mesma maneira em diferentes culturas. Alguns estudos sugerem que manifestações como tristeza profunda, irritabilidade ou alterações de sono podem ser interpretadas de maneiras distintas dependendo do país, e que algumas perguntas podem ter peso maior ou menor conforme o contexto cultural. Por isso, o processo de adaptação envolve várias etapas rigorosas e reavaliações contínuas.
Esse foi justamente o tema de minha pesquisa de doutorado, no Laboratório de Análise de Dados do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, que concluí em 2025, com apoio da bolsa nota 10 da FAPERJ. Junto com colaboradores da Universidade de Coimbra, em Portugal, e de Extremadura, na Espanha, publicamos um estudo que avaliou a equivalência desses questionários entre amostras de 315 estudantes universitários no Brasil, 426 de Portugal e 1.216 da Espanha.
Primeiro, verificamos a estrutura interna do instrumento, ou seja, como as perguntas se agrupam em fatores teóricos para a população em geral. Na avaliação de depressão (BDI-II), estudos mostram a existência de dois fatores: um ligado a sintomas cognitivos – como pessimismo ou dificuldade de concentração – e outro a sintomas físicos e emocionais – como fadiga, alterações no sono e no apetite.
Já o BAI, que mede ansiedade, ganhou importância por ser capaz de diferenciar ansiedade de sintomas depressivos, mas seus mecanismos ainda são investigados. Embora muitas pesquisas apontem a existência de dois conjuntos principais — sintomas físicos e sintomas emocionais de pânico —, outros estudos sugerem que ele poderia ter apenas um fator geral ou até mais de dois. Além disso, algumas palavras usadas no questionário em espanhol parecem ser interpretadas de formas diferentes entre culturas, como apontado em uma pesquisa com populações latinas nos Estados Unidos.
Por isso, após verificar a estrutura interna de cada teste, também é preciso avaliar a chamada invariância de medição, que testa se as mesmas perguntas têm o mesmo significado estatístico entre países. Esse passo é importante para estudos comparativos. Sabe quando a gente vê notícias de que “um estudo internacional revelou que o país Z tem as pessoas mais ansiosas do mundo!”? Pois bem, antes de confiar na manchete, precisamos nos assegurar de que os instrumentos usados no estudo medissem a ansiedade de forma equivalente entre os países.
O que encontramos
Pelo que observamos, de modo geral, o instrumento que avalia depressão foi equivalente nos três países, enquanto o que mede ansiedade, não.
Nossos resultados para o questionário de depressão (BDI-II) mostraram algumas variações pontuais em itens como interesse sexual, sentimento de punição e pensamentos de morte, mas sem comprometer o resultado geral. A estrutura de dois fatores foi consistente entre os países, indicando que o instrumento pode ser utilizado com segurança para comparar níveis de depressão entre estudantes brasileiros, portugueses e espanhóis.
Contudo, não obtivemos a resposta esperada para o instrumento de ansiedade (BAI). Os dados que coletamos não se ajustaram bem ao modelo que organiza os sintomas em dois grupos: um ligado ao corpo, como palpitação ou tontura, e outro a afetos subjetivos e pânico. Perguntas ligadas a “medo de morrer” ou “incapacidade de relaxar” tiveram níveis muito diferentes de associação com o fator “ansiedade” em cada país. Isso indica que a ansiedade pode se manifestar (ou ser percebida) de formas diferentes em cada cultura.
Além disso, o chamado “ajuste do modelo”, que é a verificação estatística de que os dados se encaixam na estrutura esperada, também não foi satisfatório. Quando isso ocorre, é sinal de alerta. Significa que o instrumento pode não estar medindo de forma semelhante o mesmo fenômeno em todos os grupos, e que comparações entre países precisam ser feitas com cautela.
Caminhos possíveis
Esses achados têm implicações importantes para a prática clínica, a pesquisa e a formulação de políticas de saúde mental.
Voltando ao exemplo da jovem brasileira que vai para a Espanha e busca ajuda psicológica: assegurar que o componente cultural seja adequadamente considerado é fator essencial para um diagnóstico preciso. Diante do aumento global das migrações, apontado pelo último Relatório Mundial sobre Migração da ONU, e da maior vulnerabilidade desse grupo a transtornos ansiosos e depressivos, é fundamental que as ferramentas de avaliação sejam culturalmente adequadas, para evitar negligenciar ou superestimar sintomas em populações migrantes.
Na pesquisa científica, a escassez de estudos de invariância pode levar a conclusões distorcidas. Especialmente quando tratamos de transtornos mentais, que são influenciados por múltiplos fatores: genéticos, sociais, econômicos, culturais, individuais e outros. Ampliar as investigações sobre a equivalência das medidas contribui para compreendermos melhor como esses transtornos mentais se manifestam em diferentes contextos e para identificar suas especificidades culturais ao redor do planeta.
O impacto disso no campo da saúde pública é direto. Quanto mais precisas e rigorosas forem as ferramentas de avaliação, mais eficazes poderão ser as políticas de prevenção e os sistemas de monitoramento dos índices de saúde mental. Buscamos, assim, uma melhor qualidade de vida para todas as populações, além das suas fronteiras.