A recente autorização dos Estados Unidos para empregar suas Forças Armadas contra cartéis no exterior recoloca no centro do debate o princípio da soberania e os limites jurídicos de operações transfronteiriças em contextos não bélicos.
A soberania, pilar do direito internacional, confere a cada Estado autoridade exclusiva sobre seu território e população; por isso, a atuação militar estrangeira sem consentimento do Estado anfitrião tende a configurar intervenção ilícita. Exceções clássicas exigem um mandato do Conselho de Segurança da ONU ou um caso estrito de legítima defesa.
No enfrentamento a cartéis, a legítima defesa é altamente controversa, pois a doutrina dominante pressupõe ataque armado atribuível a outro Estado, algo que, em regra, não se verifica no crime organizado transnacional.
Necessidade de acordos formais
Daí a importância de acordos formais que deem base legal e legitimidade. Em um espectro que vai do menos ao mais robusto, um Memorando de Entendimento (MOU pode abrir canais de cooperação — compartilhamento de inteligência, capacitação e planejamento.
Porém, por ser em geral não vinculante, um MOU não é suficiente para legitimar presença armada com poder de polícia. Para isso, o instrumento típico é o Status of Forces Agreement (SOFA), juridicamente vinculante, que define o regime aplicável às tropas estrangeiras: regras de engajamento, jurisdição penal e civil, porte de armas, uso de bases, ingresso e saída de pessoal e equipamentos, isenções fiscais e alfandegárias, responsabilização por danos e mecanismos de solução de controvérsias. Frequentemente, o SOFA é acompanhado de acordos operacionais que delimitam objetivos, áreas, prazos e cadeia de comando, reduzindo ambiguidades e riscos de “deriva de missão”.
As bases legais possíveis, portanto, são três: consentimento do Estado anfitrião (formalizado em instrumentos como MOUs, SOFAs e acordos de missão), mandato do Conselho de Segurança (com regras específicas, prazos e supervisão) e legítima defesa (interpretada estritamente à luz da Carta da ONU).
Limites claros e mecanismos de responsabilização
No caso de cartéis, o caminho juridicamente mais sólido é o consentimento expresso do país onde ocorrerão as operações, com acordos que estabeleçam limites claros, mecanismos de responsabilização e salvaguardas de direitos humanos.
No plano doméstico, há exigências em ambos os países. No Estado anfitrião, constituições e leis costumam requerer autorização legislativa para a presença de forças estrangeiras, além de controle judicial e auditoria.
No Estado que envia forças, pode haver necessidade de autorização legislativa específica, aderência a obrigações internacionais de direitos humanos e ao direito internacional humanitário quando houver risco de uso letal da força ou detenção. Regras de engajamento transparentes, trilhas de responsabilização e relatórios públicos são indispensáveis para prevenir abusos, mitigar danos a civis e assegurar reparação quando houver violações.
Operações sem acordo formal carregam riscos significativos. Externamente, podem precipitar crises diplomáticas, contenciosos em tribunais internacionais e retaliações políticas que fragilizam a cooperação regional. Internamente, alimentam narrativas de violação de soberania, mobilizam resistência social e podem enfraquecer governos parceiros. Há ainda o risco operacional de escalada e transbordamento: ações inicialmente limitadas à interdição e apoio logístico podem evoluir para operações ofensivas com consequências imprevistas, deslocando rotas ilícitas, provocando retaliações dos grupos e aumentando a violência em áreas urbanas ou fronteiriças.
Forças-tarefa conjuntas sob o comando do Estado anfitrião
Por isso, alternativas menos intrusivas devem ser priorizadas quando possível. Forças-tarefa conjuntas sob comando do Estado anfitrião, com assessoria e inteligência compartilhadas, preservam a soberania e constroem capacidade local. Cooperação policial intensificada, assistência técnica e judicial, acordos de extradição mais ágeis e harmonização legislativa em lavagem de dinheiro e controle de precursores químicos atacam a infraestrutura financeira e logística dos cartéis. Sanções financeiras direcionadas contra indivíduos e entidades, bem como medidas para cortar fluxos ilícitos — inclusive de armas —, reduzem a letalidade sem recorrer de imediato à projeção militar.
Uma estratégia legítima e eficaz combina quatro elementos: consentimento explícito, temporário e revogável do Estado anfitrião; acordos vinculantes (SOFA e instrumentos operacionais) com escopo limitado e responsabilidades definidas; controles democráticos e judiciais em ambos os países; e salvaguardas de direitos humanos incorporadas desde o desenho das operações.
A luta contra cartéis não se resolve apenas com força: exige coerência entre políticas que reduzam a demanda por drogas (prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social) e medidas que estrangulem a oferta, começando pela regulação rigorosa dos precursores químicos usados na produção (licenciamento, rastreabilidade, cotas e fiscalização efetiva ao longo da cadeia).
Somam-se a isso o controle de armas, o rastreamento de fluxos financeiros ilícitos e uma cooperação regional baseada em confiança e previsibilidade jurídica. Nesse quadro, a orientação decisiva é sempre como agir dentro das balizas do direito — preservando a soberania, minimizando danos e maximizando a eficácia de longo prazo.