Durante décadas, as florestas ocuparam um lugar privilegiado na diplomacia climática, celebradas como sumidouros de carbono indispensáveis. Por outro lado, as cidades – responsáveis por cerca de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa e mais de 75% do consumo de energia – foram muitas vezes tratadas como pano de fundo nas principais negociações. Essa divisão está ultrapassada. À medida que os líderes se preparam para a COP 30, em Belém, é preciso encarar uma realidade básica: o destino das florestas e das cidades é inseparável. Superar o abismo entre essas duas esferas é essencial para alcançar as metas climáticas globais.
Por que florestas e cidades precisam de uma nova aliança climática
O principal instrumento de coordenação da ação climática internacional continua sendo a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima(UNFCCC), que criou o processo das Conferências das Partes (COP). Assinada em 1992 e endossada por 198 países, a UNFCCC exige que os países relatem emissões, estabeleçam metas e negociem ações coletivas. No entanto, as cidades foram historicamente marginalizadas desse espaço. Apenas recentemente passaram a obter reconhecimento formal, graças à atuação de redes urbanas como o C40, o ICLEI e o Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e a Energia.
Bem menos conhecida nos círculos da diplomacia climática é a Nova Agenda Urbana(NAU), adotada em Quito durante a conferência Habitat III, em 2016. A NAU é um plano diretor para uma urbanização sustentável e positiva para a natureza, que propõe o desenvolvimento compacto, infraestrutura resiliente, moradia acessível e melhor governança local. No entanto, a NAU e a UNFCCC continuam operando em trilhas paralelas: uma engaja ministérios nacionais enquanto a outra mobiliza prefeitos e planejadores urbanos. Essa divisão institucional gera fragmentação de políticas e oportunidades perdidas para alinhar mitigação, adaptação e financiamento.
O desalinhamento entre natureza e cidades também reduziu o acesso a recursos financeiros. Atualmente, menos de 10% dos fundos climáticos multilaterais chegam diretamente aos governos locais, embora as cidades estejam cada vez mais expostas a ondas de calor, enchentes e poluição do ar. As jurisdições florestais tampouco estão em melhor situação. A conservação e a restauração recebem uma fração do financiamento destinado aos setores lucrativos da agricultura, extração de madeira e mineração. Tratar florestas e cidades como um único ecossistema – sumidouros e emissores de carbono – permitiria um financiamento mais coordenado, planejamento territorial mais coerente e monitoramento robusto das emissões ao longo das cadeias produtivas.
Há sinais de avanço. Na COP28, em Dubai, os delegados divulgaram a primeira Declaração Conjunta sobre Urbanização e Mudanças Climáticas, conectando ações locais ao balanço global. A COP29, em Baku, foi além: mais de 160 governos endossaram a Declaração sobre Caminhos Multissetoriais, promovendo o planejamento inclusivo, a mobilidade sustentável e soluções baseadas na natureza. Bancos multilaterais de desenvolvimento também se comprometeram a ampliar o financiamento climático para US$ 120 bilhões por ano até 2030, com foco explícito em infraestrutura urbana sustentável. Ainda assim, os governos nacionais seguem dominando as negociações. As cidades continuam sub-representadas e sub financiadas.
Oportunidades na integração entre urbanização e natureza
A COP30 representa uma oportunidade única de aproximar natureza e urbanização. Belém, cidade às margens da maior floresta tropical do mundo, é um símbolo poderoso. Mas, para transformar simbolismo em substância, os negociadores devem priorizar ações mutuamente reforçadoras.
Primeiro, um Compromisso Floresta–Cidade poderia formalizar parcerias entre grandes emissores metropolitanos e jurisdições florestais, especialmente em regiões tropicais. As cidades se comprometem com cortes mais profundos de emissões – por meio de transporte público eletrificado, códigos de construção neutros em carbono ou reforma da gestão de resíduos – em troca de conservação e restauração florestal verificadas em áreas rurais. Compromissos recíprocos poderiam ser incorporados às Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). O pacto poderia se inspirar no mecanismo de “Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal”, o REDD+, da ONU, mas adaptado à cooperação subnacional.
Segundo, o Fundo Verde para o Clima deveria criar uma linha exclusiva para acesso municipal, reservando ao menos 20% de seus recursos para cidades que avancem em estratégias integradas entre áreas urbanas e florestais. Modelos simplificados, assistência técnica e instrumentos de crédito facilitariam o acesso de cidades médias ao financiamento concessional. Indicadores de inclusão social e valorização da natureza deveriam ser exigências para o acesso.
Terceiro, todas as cidades com mais de um milhão de habitantes – ou capitais nacionais menores – deveriam ser obrigadas a apresentar orçamentos de carbono e uso do solo. Esses orçamentos mapearam emissões e impactos espaciais nos sistemas de habitação, transporte, energia e alimentação, identificando riscos de desmatamento embutido e vetores de expansão urbana. Vincular decisões de zoneamento e compras públicas a esses orçamentos permitiria uma expansão urbana mais inteligente e aliada à preservação florestal.
Quarto, a COP30 deveria institucionalizar o Encontro Ministerial sobre Urbanização e Clima. As edições realizadas em Dubai e Baku foram precedentes importantes. Agora é hora de torná-lo permanente no escopo da UNFCCC, com representação garantida para os governos locais. Um órgão permanente convocado anualmente pela ONU-Habitat e pela Secretaria da UNFCCC poderia facilitar a coordenação vertical e integrar métricas urbanas ao planejamento climático nacional.
Quinto, os bancos de desenvolvimento devem utilizar a promessa de US$ 120 bilhões para lançar fundos de financiamento misto voltados a projetos com benefícios duplos de carbono e biodiversidade. Corredores de transporte podem ser associados à restauração de manguezais; reformas em escolas, a programas de reflorestamento urbano. Os empréstimos poderiam ser desembolsados em parcelas vinculadas a metas verificadas de redução de emissões e conservação ecológica, enviando sinais claros ao setor privado sobre a viabilidade da infraestrutura positiva para a natureza.
Sexto, é urgente criar uma plataforma de dados padronizada e de acesso aberto. Ao integrar inventários de gases de efeito estufa em nível urbano com o monitoramento florestal por satélite (por exemplo, Global Forest Watch, NASA, ESA), seria possível desenvolver um painel comum para acompanhar, em tempo real, as emissões e a perda florestal. Isso aumentaria a confiança dos investidores e criaria responsabilização para os títulos verdes e instrumentos financeiros vinculados ao clima.
Sétimo, a NAU deveria ser atualizada por meio de um Anexo Belém na COP30, introduzindo gatilhos automáticos de financiamento. Esses gatilhos ativariam desembolsos previamente aprovados quando as cidades alcançassem marcos como transporte público eletrificado em toda a cidade, distritos neutros em carbono ou reformas no uso do solo. Mecanismos como esses reduziriam os riscos para os investidores, acelerariam a implementação e deslocariam o foco de promessas aspiracionais para resultados mensuráveis.
A lógica é evidente. As florestas absorvem cerca de um quarto das emissões anuais de CO₂ geradas pelo ser humano; as cidades determinam quanto será emitido. Mesmo um desmatamento zero não será suficiente para manter viva a meta de 1,5°C se as emissões urbanas continuarem crescendo. Da mesma forma, nem a cidade mais comprometida com o clima conseguirá estabilizar a atmosfera se sua expansão estimular o desmatamento em outras regiões. Integrar essas duas agendas é cientificamente sólido e politicamente inteligente.
Belém e a chance de unir diplomacia climática e agendas urbanas
Há também uma lógica geopolítica. A soberania estatal tradicional está sob pressão. As cadeias de suprimento, redes digitais e corredores urbanos transfronteiriços influenciam cada vez mais os resultados antes comandados por ministérios nacionais. A COP30 pode apresentar um modelo de governança adaptado a essa nova realidade: policêntrico, em rede e pragmaticamente orientado a resultados.
A presidência brasileira oferece uma alavanca poderosa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030 e a revitalizar as cidades por meio de melhorias no transporte e na habitação. Se bem executadas, essas metas domésticas podem se tornar um modelo global. Imagine um futuro em que ônibus elétricos em São Paulo sejam abastecidos por energia renovável, e a receita das passagens seja reinvestida na gestão comunitária de florestas; ou em que os títulos verdes do Rio financiam tanto parques resistentes a enchentes quanto o monitoramento por satélite das leis contra o desmatamento.
Pelo menos, a COP30 deveria integrar formalmente a Nova Agenda Urbana (NAU) ao regulamento da UNFCCC, garantir às cidades acesso facilitado ao financiamento climático e vincular cada dólar destinado à mitigação urbana a investimentos positivos para as florestas. Ao fazer isso, poderia pôr fim à falsa dicotomia entre a copa das árvores e o horizonte urbano. O tempo é curto, mas a oportunidade é imensa. Em Belém, as duas linhas de frente da luta climática podem finalmente convergir — e começar a mudar o rumo da balança.