A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe não é apenas um episódio jurídico interno. Representa um marco no debate internacional sobre os limites e as possibilidades da democracia constitucional, modelo que combina a soberania popular — expressa em eleições livres — com limites institucionais que garantem o Estado de Direito, a separação de poderes e a proteção dos direitos fundamentais.
O maior desafio contemporâneo é que a erosão democrática não ocorre mais por golpes militares, mas a partir de dentro das instituições. O escritor e jornalista Moisés Naím mostra em sua obra A Vingança do Poder que líderes autoritários modernos usam eleições legítimas para enfraquecer tribunais, atacar a imprensa e manipular instituições, valendo-se de populismo, polarização e pós-verdade. O resultado é uma democracia que mantém sua forma externa, mas perde substância, transformando-se em fachada de legitimidade.
O julgamento de Bolsonaro, nesse sentido, ilustra a função essencial da democracia constitucional: demonstrar que até mesmo líderes eleitos devem se submeter às regras do jogo democrático. Ao barrar a corrosão “por dentro”, o Brasil mostrou que suas instituições ainda podem conter o autoritarismo. Mas a lição é dupla: a decisão representa uma vitória da legalidade, ao mesmo tempo em que revela que o risco de erosão institucional continua presente.
A lição brasileira e o contraste internacional
Ao condenar Bolsonaro, o Brasil sinalizou que não tolera o uso das próprias instituições contra a democracia. O cientista político Steven Levitsky, autor de Como as Democracias Morrem, escreveu no jornal New York Times que o Brasil teve êxito onde os Estados Unidos fracassaram, lembrando que Donald Trump nunca foi responsabilizado juridicamente pela tentativa de reverter as eleições de 2020.
A diferença é significativa: enquanto nos Estados Unidos Trump voltou à presidência em 2025 e vem promovendo um processo acelerado de concentração de poder, minando freios e contrapesos, o Brasil evitou que a narrativa de “perseguição política” se sobrepusesse às provas materiais de tentativa de golpe.
Nesse cenário, a responsabilização de Jair Bolsonaro é relevante porque a erosão democrática hoje raramente ocorre por golpes clássicos, mas, como dissemos, parte do interior das instituições. Como lembram Levitsky e o autor e professor Daniel Ziblatt, líderes eleitos corroem gradualmente normas e limites constitucionais, usando a polarização como arma.
A ex-secretária de Estado Madeleine Albright já advertia que o fascismo moderno se infiltra em sistemas democráticos, esvaziando-os . O julgamento de Bolsonaro, assim, torna-se um teste de resiliência institucional, observado internacionalmente como exemplo de que é possível conter a corrosão autoritária.
Europa: a ascensão eleitoral da extrema direita
O avanço da extrema direita na Europa ajuda a dimensionar a relevância da decisão brasileira. Em países como Alemanha, Países Baixos, Polônia e Eslováquia, partidos populistas e nacionalistas ganharam força por meio das urnas, deslocando o eixo político e pressionando as democracias constitucionais.
Esse crescimento não se limita à representação parlamentar, mas ameaça o equilíbrio institucional. A experiência da Hungria sob Viktor Orbán mostra como líderes eleitos podem capturar tribunais, meios de comunicação e órgãos de controle, transformando gradualmente democracias em autocracias eleitorais.
Nesse cenário, a condenação de Bolsonaro pelo STF aparece como um contraponto. Ao afirmar que até mesmo líderes eleitos devem respeitar os limites constitucionais, o Brasil oferece um exemplo de resistência ao autoritarismo “por dentro”, em contraste com a tendência de fragilização democrática observada em parte da Europa.
América Latina: o poder pelo voto e a captura das instituições.
Na América Latina, a situação não é menos preocupante. Nayib Bukele, em El Salvador, consolidou um regime autoritário sob o manto da popularidade, utilizando medidas de segurança excepcionais para enfraquecer contrapesos e concentrar poder.
No México, o primeiro a realizar uma eleição para escolher juízes em todos os níveis em 2025, na chamada eleição judicial – marcada por abstenção recorde e vitória integral de candidatos ligados ao partido governista Morena — comprometeu a independência do Judiciário e resultou em uma Suprema Corte alinhada ao Executivo. No mandato da presidente mexicana Claudia Sheinbaum, o Judiciário tornou-se um contrapeso fragilizado, reforçando a concentração de poder e evidenciando que a erosão democrática pode ocorrer tanto sob governos de direita quanto de esquerda.
Esses exemplos mostram que a erosão democrática não é monopólio de uma ideologia específica e sim uma técnica de poder recorrente. Líderes contemporâneos, de direita ou de esquerda, recorrem a mecanismos semelhantes — o populismo, a polarização e a política da pós-verdade — para enfraquecer freios institucionais, desacreditar opositores e mobilizar bases sociais de forma cada vez mais radicalizada.
O risco permanente e a necessidade de fortalecer instituições
O desafio brasileiro, no entanto, não se encerra com a condenação de Bolsonaro. O populismo autoritário costuma oferecer respostas simples para problemas complexos, explorando medos e ressentimentos sociais. Esse tipo de retórica não desaparece diante de uma decisão judicial; ao contrário, pode ser usado como combustível por aqueles que se apresentam como vítimas de perseguição, reforçando ainda mais a polarização política.
É por isso que a defesa da democracia constitucional deve ir além da responsabilização individual. É necessário investir no fortalecimento contínuo das instituições — tribunais, parlamentos, imprensa livre, sociedade civil — e preservar sua autonomia. Sem esse esforço, mesmo vitórias importantes, como a decisão recente do STF, correm o risco de se tornar episódios isolados num cenário global de retrocesso.
A condenação de Jair Bolsonaro projeta o Brasil como um exemplo de resiliência democrática em um mundo marcado pela ascensão do populismo autoritário. Enquanto na Europa partidos de extrema direita se fortalecem e, nos Estados Unidos, Trump avança na corrosão institucional, o Brasil mostrou que é possível responsabilizar líderes que tentam destruir a democracia “por dentro”.
Essa é, em essência, a tarefa das democracias constitucionais: garantir que a vontade popular não se transforme em tirania majoritária, mas seja equilibrada por instituições sólidas, capazes de proteger direitos e conter abusos. O futuro mostrará se essa decisão do STF será lembrada como um ponto de inflexão duradouro ou apenas como uma trégua em meio ao ciclo global de erosão democrática.