
Trinta e três anos após a Rio 92, conferência que consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável, a COP 30, em Belém, marca um momento importante na governança climática global. A escolha da Amazônia como sede não é casual: a região constitui componente fundamental para a estabilidade climática planetária, mas enfrenta pressões sem precedentes de desmatamento, queimadas e perda de biodiversidade.
A conferência ocorre no momento em que as emissões globais deveriam começar a declinar aceleradamente, o que torna ainda mais premente a necessidade de soluções adaptadas às realidades regionais. Não é apenas a floresta que se encontra em ponto de inflexão, mas também as sociedades regionais, que durante milênios conservaram e manejaram a biodiversidade, aperfeiçoando seus usos e mesmo a qualidade dos solos.
A COP 30 suscita expectativas em diferentes escalas por parte dos poderes públicos, mas também do mercado. Trata-se, na maior parte do tempo, de fazer investimentos para converter e/ou diminuir as emissões de CO2 nas atividades mais impactantes para o meio ambiente, bem como garantir no plano geopolítico vantagens oriundas do sucesso dessas iniciativas.
Nesse cenário de alinhamento entre metas climáticas e interesses econômicos, foi criado na COP 28, em Dubai, o programa Acelerador de Transição Industrial (ITA). Financiado por empresas que trabalham com o mercado financeiro, atua como um intermediador para destravar e viabilizar investimentos da ordem de US$ 18 bilhões em setores de difícil abatimento de emissões como produtos químicos, aço e alumínio, cimento e aviação.
Desconexão com as populações locais
No entanto, ao mesmo tempo em se anuncia a aceleração de projetos de conversão energética — hidrelétricas e eólicas, persiste um descompasso. Os ganhos não se traduzem para as populações amazônicas que sustentam suas vidas e rendas pelo uso da biodiversidade em sistemas de baixíssimo impacto climático (sistemas domésticos em terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação), conforme já indicado na literatura.
A desconexão entre políticas energéticas e modos de vida locais não é apenas eventual. Em muitos casos, os próprios investimentos em mitigação climática acabam produzindo efeitos adversos sobre as populações amazônicas. Um caso emblemático é o da Usina de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, que causou o deslocamento compulsório dos habitantes da região.
A construção dessa usina hidrelétrica quebrou a espinha dorsal de uma reprodução doméstica baseada na pesca em toda a região do Xingu situada no sudoeste do estado, em particular na área da Volta Grande do Xingu, trecho com cerca de 100 quilômetros de extensão. Nesse ponto, o rio forma uma curva natural em forma de “U” que era marcada por forte correnteza, cachoeiras e corredeiras importantes para a reprodução dos peixes e para o modo de vida das comunidades ribeirinhas e povos indígenas que vivem suas margens.
Desde o enchimento do reservatório e o desvio de grande parte da vazão do Xingu para alimentar as turbinas de Belo Monte, em especial a Volta Grande passou a receber um volume muito menor de água. Essa alteração provocou o rebaixamento do nível do rio, acarretando uma drástica mudança no regime de vazão e das cheias, rompendo o ciclo natural da piracema (desova) e afetando a fertilidade das margens.
Logo após o início da operação da usina, o que se viu foi uma mortandade sem precedentes de peixes e quelônios (como tartarugas e tracajás). Isso foi agravado pela liberação de gás metano proveniente da vegetação submersa, comprometendo de forma irreversível o equilíbrio ecológico da região.
Além da perda de vida no rio, as políticas de realocação conduzidas pela Norte Energia S.A., empresa de capital misto responsável pela gestão da Usina de Belo Monte, fragmentaram e dispersaram conjuntos de famílias antes organizadas em unidades integradas de produção e consumo. Elas hoje sofrem com os efeitos combinados de todas essas transformações.
Consequências e possibilidades a médio e longo prazo
Grandes obras trazem também novas infraestruturas, como a abertura de estradas, que aquecem o mercado fundiário e introduzem novas ameaças à integridade territorial de outras populações não diretamente afetadas, intensificando processos de grilagem de terras. Atraem, com isso, considerável número de trabalhadores que permanecem, inchando as cidades e provocando pressões demográficas num sistema de investimentos públicos em saúde já insuficiente. O mesmo se pode dizer dos impactos decorrentes da instalação de torres de energia eólica.
A soma desses impactos acaba por tensionar as economias domésticas até seu ponto de ruptura, destruindo a funcionalidade de sistemas sociais inteiros e engendrando efeitos dominó. Entre eles, a criminalidade urbana. Como no caso de Altamira após Belo Monte, a urbanização forçada joga a nova geração, privada de qualquer pertencimento cultural que a valorize, no colo das facções criminosas, o que contribui de diversas maneiras para alimentar as atividades de mineração ilegais, grilagem e investimentos e lavagem de dinheiro ilegal proveniente de venda de drogas, relançando o círculo infernal das atividades predatórias.
A Amazônia Legal apresenta cerca de 25% de sua população vivendo em áreas rurais, o que representa aproximadamente 7 milhões de pessoas. Apesar do forte êxodo rural dos últimos 30 anos, o universo das economias domésticas é extremamente significativo demograficamente, socialmente e economicamente.
As economias domésticas da Amazônia não apenas contribuem para mitigar as mudanças climáticas, por meio do uso sustentável dos recursos naturais, como também representam uma forma consistente de emprego de mão de obra e de trabalho vivo na produção. Garantir as condições territoriais para a sua reprodução é essencial para enfrentar as mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, assegurar a integridade sociocultural de vastas parcelas da população da Amazônia.
Sabemos também que é possível manter constantes as rendas líquidas desses sistemas agroflorestais simplesmente por meio da melhoria dos termos de troca comercial, mesmo em situações de produtividade decrescente — embora os projetos de desenvolvimento insistam em ganhos de produtividade baseados em cadeias de produtos únicos.
Da mesma forma, ganhos de produtividade podem ser obtidos a partir de um ambiente institucional que promova melhor organização logística e comercial do sistema, sem renunciar à diversidade dos produtos explorados. Trata-se de priorizar ganhos de escala baseados na manutenção da diversidade produtiva, e não em aumentar a produtividade de determinados produtos ou cadeias isoladamente através de pacotes tecnológicos exógenos e inadequados aos contextos socioculturais.
Deve-se, assim, reconhecer a enorme contribuição das economias domésticas no quadro das mudanças climáticas. Recomendamos que as negociações da COP 30 atribuam igual importância aos investimentos em mitigação e adaptação e a projetos de desenvolvimento sustentável a elas destinados. Desenvolvimento que garanta seus territórios e a manutenção de seus modos de vida, bem como a sistemas de acesso a créditos e a programas de melhorias logísticas específicos para as necessidades dessa sociobioeconomia, fundada na diversidade de produtos e em tecnologias sociais.
A sustentabilidade amazônica não pode ser alcançada através de mecanismos de mercado que excluam os povos que criaram e mantiveram a diversidade ecológica regional. A ciência amazônica e suas instituições de pesquisa desenvolveram nos últimos 30 anos inúmeras inovações em parceria com as populações locais (como as escolas familiares agrícolas, sistemas agroflorestais, restauração biocultural, estudos de sistemas haliêuticos e de etnobotânica etc).
Apesar de receber menos de 10% dos recursos nacionais de pesquisa, a ciência amazônica possui potencial transformador se adequadamente fortalecida, especialmente através da integração entre conhecimento acadêmico e saberes tradicionais, em arranjos transdisciplinares, cruciais para abordar as complexas realidades territoriais, agravadas pelas mudanças climáticas.





