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Ataque a lancha vinda da Venezuela abre precedente perigoso para ações unilaterais em águas internacionais

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Ataque a lancha vinda da Venezuela abre precedente perigoso para ações unilaterais em águas internacionais

O ataque realizado pelos Estados Unidos contra uma embarcação procedente de Venezuela, deixando 11 mortos, está elevando a tensão no Caribe a níveis inéditos desde a crise política de 2019. Donald Trump confirmou ter ordenado pessoalmente a ação, alegando que o barco transportava drogas para território norte-americano e era operado pelo grupo criminoso Tren de Aragua, classificado unilateralmente como organização terrorista por Washington.

Segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), as águas marítimas estão organizadas em faixas, cada qual com consequências jurídicas. O mar territorial vai até 12 milhas náuticas da costa, contados desde a denominada “linha de base”, e confere soberania total ao Estado, inclusive sobre o espaço aéreo e o leito marinho. Já a zona contígua, entre 12 e 24 milhas náuticas, permite ao Estado adotar medidas preventivas e repressivas em matéria aduaneira, fiscal, migratória e sanitária, mas não confere soberania total. A Zona Econômica Exclusiva (ZEE) se estende até 200 milhas náuticas, concedendo direitos soberanos para a exploração dos recursos naturais, sem restringir a navegação internacional.

Trump declarou que a operação ocorreu em águas internacionais, ou seja, alto-mar, a partir das 200 milhas náuticas. No alto-mar, prevalece o princípio da liberdade de navegação, conforme o artigo 87 da UNCLOS. Esse princípio é central para o direito do mar. As exceções são poucas como, por exemplo, os casos de pirataria, tráfico de escravos, tráfico de drogas, transmissões ilegais e ameaças à paz e ordem pública internacional e transmissões não autorizadas. O artigo 108 da UNCLOS exige cooperação internacional e não ações unilaterais no combate ao tráfico de drogas no mar.

O ataque a uma embarcação estrangeira em alto-mar, em princípio, viola o regime de jurisdição exclusiva do Estado de bandeira. Entretanto, no caso das conhecidas “lanchas rápidas” -frequentemente empregadas no transporte/tráfico de drogas-, é comum que naveguem sem bandeira visível ou que se tente ocultar a nacionalidade, tornando mais complexa a aplicação automática desse princípio. Ainda assim, se comprovada a nacionalidade da embarcação, a intervenção externa, unilateral, continuaria sendo ilegal. Por outro lado, se o ataque ocorresse dentro do espaço marítimo da Venezuela, a situação seria muito pior, pois constituiria claramente uma violação dos direitos soberanos do Estado costeiro e constituiria um ato de agressão, conforme previsto no artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas, salvo hipóteses muito restritas de legítima defesa, cooperação ou autorização internacional.

A classificação unilateral do Tren de Aragua como grupo terrorista não autoriza, por si só, a realização de ataques. Para que uma ação desse tipo fosse considerada legítima, seria necessária uma autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU ou a configuração inequívoca de uma situação de legítima defesa, nos termos previstos pelo direito internacional. Essa hipótese exige a comprovação de uma ameaça real e iminente, algo difícil de demonstrar apenas com base na suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas transportado por uma lancha.

A doutrina internacional considera controverso também o argumento de legítima defesa preventiva. Princípios como necessidade e proporcionalidade norteiam o uso legítimo da força; destruição total da embarcação e morte dos ocupantes destoam desses critérios.

Caracas reagiu mobilizando tropas e civis, classificando o incidente como um ato de agressão. Ao mesmo tempo, o governo venezuelano alegou a existência de uma campanha sistemática de desinformação, alimentada por conteúdos produzidos com o uso de inteligência artificial. De qualquer modo, o episódio aprofunda a instabilidade no Caribe e pressiona o Brasil, que mantém uma extensa fronteira com a Venezuela e possui interesses estratégicos na região, a reavaliar sua posição no cenário internacional.

O Brasil tem uma tradição diplomática marcada pela defesa da solução pacífica de controvérsias e do princípio da não intervenção, pilares consolidados de sua política externa. A crescente tensão no Caribe, com o aumento da presença militar dos Estados Unidos e a mobilização da Venezuela, afeta rotas marítimas estratégicas utilizadas para o transporte de petróleo e derivados.

Como a Venezuela detém algumas das maiores reservas de petróleo do mundo, qualquer incidente na região pode elevar os custos de seguro e transporte, além de aumentar a percepção global de risco no mercado de energia, com reflexos diretos sobre cadeias logísticas internacionais e sobre o comércio regional. Nesse contexto, a resposta internacional ao incidente não pode se limitar a declarações de repúdio ou à troca de acusações.

Trata-se de um episódio que coloca em xeque a arquitetura jurídica construída desde a criação da ONU e ameaça consolidar um perigoso precedente de ações unilaterais no mar. Se a comunidade internacional não reagir com firmeza, corre-se o risco de abrir espaço para uma escalada de confrontos em águas internacionais, com impactos devastadores para a estabilidade global e para a credibilidade do direito internacional.

Para o Brasil, a crise representa um desafio diplomático e, ao mesmo tempo, uma oportunidade estratégica de reafirmar sua vocação de mediador, defendendo soluções multilaterais que evitem que o Caribe se transforme no novo epicentro de um conflito com repercussões mundiais.

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