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Ato em São Paulo revela virada estética, afetiva e política do bolsonarismo pós 8 de janeiro

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Ato em São Paulo revela virada estética, afetiva e política do bolsonarismo pós 8 de janeiro

No último domingo, 29 de junho de 2025, cerca de 12 mil pessoas participaram do ato “Justiça Já” convocado por Jair Bolsonaro (PL), na Avenida Paulista, em São Paulo. O evento foi mobilizado como uma resposta ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da tentativa de golpe de Estado e pedia anistia aos condenados do 8 de janeiro. Além dessas agendas, a manifestação foi também um ato de campanha com Bolsonaro pedindo para que seus apoiadores ajudassem a eleger 50% do Congresso Federal nas eleições de 2026 para “mudar o Brasil”. O ato foi organizado pelo pastor Silas Malafaia, reunindo ainda os governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Cláudio Castro (PL-RJ), Jorginho Mello (PL-SC) e Romeu Zema (Novo-MG), entre outras lideranças do PL, e os integrantes do clã Bolsonaro: Jair, Flávio, Carlos e Renan.

Este é o segundo ato em São Paulo, após o início do processo no STF, e expressa uma reconfiguração do projeto bolsonarista, já em curso desde o ato de 6 de abril de 2025. Após o 8 de janeiro e seus desdobramentos, o bolsonarismo tem sido forçado a uma reconfiguração sem um dos pilares do movimento: os militares. A denúncia de tentativa de golpe expôs o envolvimento direto de setores das Forças Armadas, especialmente a partir das revelações trazidas por Mauro Cid, então tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro. O depoimento de Cid, juntamente com provas documentais, registros de reuniões e diálogos, se tornou peça-chave para a formalização da denúncia contra o ex-presidente, que aponta a existência de uma articulação golpista com a participação de militares da ativa e da reserva.

O peso institucional de Cid e sua posição estratégica na cadeia de comando reforçaram o desgaste da associação entre bolsonarismo e Forças Armadas. Como resposta, a cúpula militar passou a adotar uma postura de distanciamento, buscando preservar a imagem institucional e conter os danos pela associação com projetos antidemocráticos. Esse distanciamento enfraqueceu a centralidade da retórica militarista que sustentava a estética de força e autoridade do bolsonarismo.

Diante da inelegibilidade de Bolsonaro, da criminalização da tentativa de golpe, da prisão de centenas de manifestantes e do afastamento dos militares, o campo bolsonarista precisou reorganizar sua gramática política. Sem os generais no palanque, o movimento passou a se apoiar em outras figuras de legitimidade: pastores de grande projeção, parlamentares fiéis, mulheres presas no 8 de janeiro e seus familiares, além dos possíveis herdeiros políticos de Bolsonaro. Entre eles, os governadores aliados, com destaque para Tarcísio de Freitas, que se tornou a principal liderança em ascensão; a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro; e os filhos do ex-presidente. Esses atores passaram a ocupar o centro da narrativa política e das manifestações realizadas na Avenida Paulista, localizada no estado com o maior colégio eleitoral do país.

Essa transição provocou uma mudança estética e discursiva dos atos: da força à fé, da autoridade ao mártir, da virilidade armada à feminilidade convertida em símbolo de perseguição contra as mulheres presas pelo 8 de janeiro. Se antes predominavam elementos bélicos (como fardas, armas, retórica de confronto direto e virilidade), agora emerge uma estética marcada pela martirização de Bolsonaro e pela encenação de sofrimento moral da direita. E, no segundo ato na Avenida Paulista, ao invés de prometer retornar ao Planalto, Bolsonaro passou a afirmar que já “nem precisa ser presidente”. É nesse novo arranjo que emerge o núcleo discursivo associando bíblia, batom e bandeiras, uma tríade que expressa a reconfiguração política, moral e identitária do bolsonarismo no pós-8 de janeiro. A análise se baseia na pesquisa etnográfica dos atos de abril e junho, em São Paulo.

Bíblia: a fé que produz o mártir

A religião sempre esteve presente nas manifestações bolsonaristas, mas, nos recentes atos organizados por Silas Malafaia, sua centralidade tornou-se ainda mais evidente. A retração dos militares abriu espaço para que a religião se tornasse o regime principal de autoridade, identidade e afeto do bolsonarismo. Com o enfraquecimento do tripé militarismo, religião e patriotismo, reduzido agora a um eixo simbólico entre fé e nação, a religião tem servido para deslocar Bolsonaro da política para o campo do sacrifício. Com isso, os atos recentes passaram a se organizar não mais como enfrentamento direto, mas como uma espécie de ritual de resistência da direita. Isso se complementa com a “denúncia” de um suposto sistema injusto, definido por Malafaia pela censura e por uma ditadura do judiciário.

Esse novo arranjo performático se apoia em elementos de culto evangélico, com orações, música ao fundo e variação da trilha sonora, comoção religiosa, pregações e linguagem de salvação. Bolsonaro, nesse novo arranjo simbólico, deixa de ser apresentado como o herói militar glorioso para se tornar o mártir injustiçado, mas firme em seu propósito. Soma-se a isso, a substituição dos generais por pastores, esposas, e familiares, que não apenas redefine os corpos no palanque, mas também reformula a linguagem bolsonarista, convertendo o palanque em púlpito, os eleitores em fiéis.

O fator religioso está também na forma: a tecnologia empregada na manifestação reflete diretamente os modos de produção e transmissão típicos dos grandes eventos evangélicos. A transmissão ao vivo em alta qualidade, o uso de drones para captar ângulos aéreos, a multiplicação de telões pela Avenida Paulista, as vans que transportavam manifestantes, as camisetas, bandeiras e bonés padronizados se assemelham às grandes estruturas dos cultos em larga escala. Assim como os megatemplos, o ato foi organizado para ser assistido, compartilhado e vivido como experiência coletiva midiática, com forte apelo emocional. A religião, nesse contexto, não está apenas no conteúdo, mas na forma: a tecnologia estrutura o modo como o evento é encenado e como a comunidade se reconhece dentro dele. A estética religiosa ocupa, assim, não só o palanque — mas a logística, o audiovisual, o transporte e o vestuário. É a performance de uma fé pública, mediada por todos os recursos técnicos disponíveis

Batom: a reserva moral do feminino e a anistia

No segundo ato bolsonarista de junho, um varal gigante continha fotos em grande escala de uma série de mulheres presas pelo envolvimento no 8 de janeiro. O objetivo era evocar o sofrimento e a injustiça contra filhas, mães e avós que foram sentenciadas à prisão. O bolsonarismo sempre foi marcado por seus traços de masculinismo e misoginia, mas esse novo elemento do feminino se consolidou no primeiro ato, em abril, que chegou a contar com a presença e o protagonismo da ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro, ausente no segundo ato.

Em abril, a manifestação teve como mote o caso de Débora Rodrigues dos Santos, mãe de dois filhos e condenada a 14 anos de prisão. O que transformou Débora em ícone foi a imagem, amplamente difundida, em que ela escreveu a frase “Perdeu, mané” com batom vermelho na estátua da Justiça, no STF. Débora e outras mulheres têm sido apresentadas como símbolos da mulher comum, religiosa, honesta e trabalhadora, supostamente punidas de forma arbitrária no julgamento dos atos de 8 de janeiro. E esse processo de “feminilização do Bolsonarismo” tem ainda o efeito de pavimentar uma eventual candidatura de Michele na eleição de 2026, seja ao Senado ou mesmo na chapa presidencial.

A mobilização do feminino nas campanhas pela anistia aos presos do 8 de janeiro tem operado como uma estratégia para reconfigurar a narrativa pública sobre a data. Ao destacar mulheres como Débora como inocentes e injustamente punidas, o bolsonarismo transforma a demanda por anistia em um apelo moral, afetivo e familiar, distanciando-se da imagem do patriota armado e aproximando-se da figura da mãe, da esposa ou da avó. A presença dessas mulheres nos palanques, nos varais de fotos e nas orações públicas tenta conferir legitimidade à pauta da anistia, ela se desloca da impunidade aos golpistas ao perdão humanitário. Assim, o feminino não apenas suaviza a imagem do bolsonarismo após a tentativa de golpe, mas serve para ressignificar o pedido de anistia como gesto de compaixão e perdão. Na prática, a campanha pela anistia se presta à função de abrir caminho político para a reabilitação pública e judicial do ex-presidente. O apelo às mulheres encarceradas funciona como anteparo para uma anistia maior: a de Jair Bolsonaro.

Bandeiras: o bolsonarismo em suas redes transnacionais

No ato de junho, o mesmo varal com as fotos das mulheres do 8 de janeiro, era composto pelas bandeiras de Israel, Estados Unidos e Brasil, elementos de conexão transnacional do bolsonarismo. O 8 de janeiro serviu para colocar o Brasil no circuito da extrema direita global. A bandeira dos EUA aponta para um pertencimento: o Brasil bolsonarista não se vê isolado, mas reconhece em uma aliança transnacional, que encontra um suposto apoio na própria figura do presidente Donald Trump. Entre os filhos adultos de Bolsonaro, o único ausente no segundo ato foi Eduardo, representado por um enorme pôster em que os bolsonaristas demonstram apoio a ele em seu auto exílio nos EUA. Eduardo tem atuado como o principal elo entre o bolsonarismo e as redes transnacionais da extrema direita e tem denunciado o Supremo Tribunal Federal, no exterior, como agente de perseguição política”.

Já a bandeira de Israel, como analisam Rodrigo Toniol e Kobi Assaf, funciona como uma espécie de blindagem do bolsonarismo, permitindo que o movimento se declare pró-judeu, ao mesmo tempo que convive com a proximidade com grupos extremistas e até neonazistas. Ao mesmo tempo, conforme analisa Michel Gherman, trata-se de uma o gesto de empunhar essa bandeira legitima o processo de “não judeu judeu”, isto é, a inclusão de um tipo de imaginário sobre os judeus e a consequente exclusão dos judeus progressistas, críticos ao bolsonarismo.

Apesar da redução expressiva no número de participantes, amplamente destacada pela imprensa, o ato bolsonarista de 29 de junho na Avenida Paulista não deve ser lido apenas como sinal de enfraquecimento. Se, por um lado, os dados de público indicam um encolhimento visível da capacidade de mobilização dos atos, por outro, o evento antecipa tendências políticas, discursivas e performáticas relevantes para o cenário eleitoral de 2026. A reconfiguração do bolsonarismo, marcada pelo afastamento dos militares, pela emergência de figuras femininas no centro das narrativas e pela mobilização de códigos religiosos e nacionalistas, oferece pistas do que virá. O que parece pequeno ou esvaziado em termos numéricos pode indicar não uma retração definitiva, mas uma reorganização, capaz de produzir novas formas de engajamento, sustentação e disputa pelo imaginário político.

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