Em qualquer país do mundo que não esteja em guerra, uma atuação de agentes do Estado que provocasse mais de 100 mortos (o número final ainda é desconhecido) seria considerada uma tragédia histórica, um marco para repensar a atuação estatal, um motivo para abrir comissões parlamentares de inquérito que permitissem entender a catástrofe e evitar sua repetição.
Mas não para o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, que apresentou orgulhosamente a operação como a maior nunca vista e como evidência da sua firmeza contra o crime no dia em que Rio pareceu finalmente ultrapassar a guerra na faixa de Gaza no número de vítimas fatais. Ele ainda precisa convencer as polícias de que uma operação com quatro policiais mortos é um sucesso.
A segurança pública tem como objetivo a preservação de direitos, dentre eles a vida em primeiro lugar. Por isso, qualquer ação policial deve ser planejada para minimizar os confrontos armados, não para promovê-los como um troféu.
Entretanto, na lógica bélica que inspira as políticas de segurança do Rio de Janeiro, a meta é causar o máximo número de baixas no “exército” inimigo, tal que o placar provisório de 120 a 4 lhes parece francamente favorável.
Operação Contenção
Nesse caso, o objetivo era o “quartel geral” do Comando Vermelho nos complexos da Penha e do Alemão. Algo parecido, embora menos violento, foi tentado em 2010 no Complexo do Alemão, com os resultados já conhecidos.
A ação, ironicamente chamada Operação Contenção, causa espanto pelo número recorde de vítimas, pela longa fileira de mortos empilhados no chão e pelo colapso que gerou na cidade com escolas e universidades fechadas e milhares de pessoas sem transporte para voltar em casa; por outro lado, deixa uma inconfundível sensação de déjà-vu na cidade.
Invadir, matar e sair
Trata-se da repetição, numa escala mais elevada, da velha estratégia de invadir territórios dominados pelos grupos criminosos, matar suspeitos, apreender algumas armas e drogas e sair depois para retornar alguns meses depois e repetir o ciclo.
As armas, as drogas e os mortos serão substituídos, se é que já não o foram, e as redes criminosas continuarão a funcionar de igual maneira.
E os custos para as populações que moram nesses locais são elevadíssimos: vítimas por bala perdida, impossibilidade de estudar ou trabalhar, problemas de saúde pelo estresse, baixo aprendizado das crianças, custos econômicos extraordinários e uma vida sob constante risco e ameaça.
Não é surpreendente que essa “guerra” sempre afete áreas periféricas e nunca atinja bairros de classe média-alta onde ela não seria tolerada.
Essa estratégia nunca conseguiu desarticular as facções criminosas, mas comprova a velha tradição da segurança pública no Brasil de dobrar a dosagem quando o medicamento não mostra os efeitos desejados.
Premiação Faroeste
Se o governo do Rio de Janeiro quisesse realmente enfraquecer o Comando Vermelho, poderia seguir a estratégia das UPPs na época inicial em que elas funcionavam: tomar comunidades relativamente pequenas com grandes contingentes de policiais para inibir o confronto, e ficar depois nesses territórios para consolidar o controle. Ou poderia investigar os tentáculos financeiros e de lavagem de dinheiro que sustentam o crime organizado. Ou poderia, ainda, investigar os agentes públicos corruptos que estão sempre por trás dos grupos criminosos.
Mas o governo do Rio de Janeiro, provavelmente, queria gerar um fato político, para se apresentar como implacável contra o crime em ano pré-eleitoral, sabendo que a segurança pública será um dos principais motes da campanha.
Se a rotina continuar assim, os deputados que querem recriar a “premiação faroeste”, que recompensava policiais que matavam nos anos 90, terão a partir de agora muitos policiais para premiar e uns quantos para enterrar.
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso Nova Brasília, cuja sentença obriga ao Estado brasileiro a apresentar regularmente um relatório do uso da força letal, medida ainda não cumprida, e obriga ao Estado do Rio de Janeiro a apresentar planos de redução da letalidade policial.
Nesse cenário, o governador Castro joga simultaneamente para duas plateias contraditórias. Para o STF e para os setores mais progressistas, ele apresenta um plano de redução da letalidade e mostra dados que revelavam, até agora, uma redução da letalidade policial nos últimos três anos, como mostra o gráfico abaixo.
Redução registrada, diga-se de passagem, após a saída do governador Wilson Witzel que pregava atirar “na cabecinha” dos suspeitos e após a ADPF 635 em que o STF colocou limites às operações policiais.
Já para os defensores do “bandido bom é bandido morto”, Castro organizou algumas megaoperações policiais com números recordes de mortes, recordes agora amplamente quebrados. A operação do 28 de outubro foi tão letal que será muito improvável confirmar a redução da letalidade em 2025, o que tornará difícil continuar mantendo os dois discursos simultaneamente. Talvez, por isso, o governador tenha chamado justo agora a ADPF 635 de “maldita”.
Do ponto de vista tático, chama a atenção o alto número de mortos que têm sido retirados da mata. Até agora, a polícia do Rio não entrava na mata por considerá-la um terreno muito arriscado, nem sequer o Bope o fazia. Mas isso pode ter mudado agora e poderia ajudar a explicar também o alto número de policiais mortos.
Do ponto de vista discursivo, o governador usa o eufemismo “neutralizar” quando quer dizer matar, seguindo a mesma linguagem da proposta de lei que pretende recriar a “premiação faroeste”.
Mais preocupante ainda é o uso recorrente do termo “narcoterrorista” para designar os suspeitos, na esteira do governo Trump e de vários governos regionais como o de Equador e o de El Salvador.
Não existe uma definição universal de “terrorismo”, que continua sendo um termo em disputa, mas em geral considera-se terrorista quem persegue objetivos políticos de forma violenta, atacando a população civil. Nossas facções criminosas, brutais como elas são, almejam simplesmente o lucro.
A rigor, nenhuma legislação antiterrorista permite matar diretamente suspeitos de cometerem crimes, apenas costumam alongar prazos de detenção provisória e diminuir algumas garantias processuais.
Porém, o conceito de terrorista está sendo usado para justificar execuções sumárias, como as cometidas pelo governo dos EUA contra tripulantes de lanchas nas costas venezuelanas e colombianas. Aplica-se o direito de guerra (o Direito Internacional Humanitário) a situações de criminalidade onde vigora o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Na prática, supostos delinquentes são tratados como soldados inimigos a serem eliminados. Pena de morte sem julgamento, sem provas, sem direito de defesa. Garante-se assim que alguns inocentes serão também assassinados, tratados como baixas colaterais numa guerra, a guerra contra as drogas, que é impossível de ser vencida. Décadas, séculos de evolução jurídica e civilizatória são colocados em questão e a barbárie começa a ser normalizada. Hobbes que se cuide.
A publicação deste artigo foi financiada pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes).
