Ad image

Bandido bom é bandido morto no atacado: a velha e ineficaz estratégia da segurança pública

9 Min Read
Bandido bom é bandido morto no atacado: a velha e ineficaz estratégia da segurança pública

Em qualquer país do mundo que não esteja em guerra, uma atuação de agentes do Estado que provocasse mais de 100 mortos (o número final ainda é desconhecido) seria considerada uma tragédia histórica, um marco para repensar a atuação estatal, um motivo para abrir comissões parlamentares de inquérito que permitissem entender a catástrofe e evitar sua repetição.

Mas não para o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, que apresentou orgulhosamente a operação como a maior nunca vista e como evidência da sua firmeza contra o crime no dia em que Rio pareceu finalmente ultrapassar a guerra na faixa de Gaza no número de vítimas fatais. Ele ainda precisa convencer as polícias de que uma operação com quatro policiais mortos é um sucesso.

A segurança pública tem como objetivo a preservação de direitos, dentre eles a vida em primeiro lugar. Por isso, qualquer ação policial deve ser planejada para minimizar os confrontos armados, não para promovê-los como um troféu.

Entretanto, na lógica bélica que inspira as políticas de segurança do Rio de Janeiro, a meta é causar o máximo número de baixas no “exército” inimigo, tal que o placar provisório de 120 a 4 lhes parece francamente favorável.

Operação Contenção

Nesse caso, o objetivo era o “quartel geral” do Comando Vermelho nos complexos da Penha e do Alemão. Algo parecido, embora menos violento, foi tentado em 2010 no Complexo do Alemão, com os resultados já conhecidos.

A ação, ironicamente chamada Operação Contenção, causa espanto pelo número recorde de vítimas, pela longa fileira de mortos empilhados no chão e pelo colapso que gerou na cidade com escolas e universidades fechadas e milhares de pessoas sem transporte para voltar em casa; por outro lado, deixa uma inconfundível sensação de déjà-vu na cidade.

Invadir, matar e sair

Trata-se da repetição, numa escala mais elevada, da velha estratégia de invadir territórios dominados pelos grupos criminosos, matar suspeitos, apreender algumas armas e drogas e sair depois para retornar alguns meses depois e repetir o ciclo.

As armas, as drogas e os mortos serão substituídos, se é que já não o foram, e as redes criminosas continuarão a funcionar de igual maneira.

E os custos para as populações que moram nesses locais são elevadíssimos: vítimas por bala perdida, impossibilidade de estudar ou trabalhar, problemas de saúde pelo estresse, baixo aprendizado das crianças, custos econômicos extraordinários e uma vida sob constante risco e ameaça.

Não é surpreendente que essa “guerra” sempre afete áreas periféricas e nunca atinja bairros de classe média-alta onde ela não seria tolerada.

Essa estratégia nunca conseguiu desarticular as facções criminosas, mas comprova a velha tradição da segurança pública no Brasil de dobrar a dosagem quando o medicamento não mostra os efeitos desejados.

Premiação Faroeste

Se o governo do Rio de Janeiro quisesse realmente enfraquecer o Comando Vermelho, poderia seguir a estratégia das UPPs na época inicial em que elas funcionavam: tomar comunidades relativamente pequenas com grandes contingentes de policiais para inibir o confronto, e ficar depois nesses territórios para consolidar o controle. Ou poderia investigar os tentáculos financeiros e de lavagem de dinheiro que sustentam o crime organizado. Ou poderia, ainda, investigar os agentes públicos corruptos que estão sempre por trás dos grupos criminosos.

Mas o governo do Rio de Janeiro, provavelmente, queria gerar um fato político, para se apresentar como implacável contra o crime em ano pré-eleitoral, sabendo que a segurança pública será um dos principais motes da campanha.

Se a rotina continuar assim, os deputados que querem recriar a “premiação faroeste”, que recompensava policiais que matavam nos anos 90, terão a partir de agora muitos policiais para premiar e uns quantos para enterrar.

O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso Nova Brasília, cuja sentença obriga ao Estado brasileiro a apresentar regularmente um relatório do uso da força letal, medida ainda não cumprida, e obriga ao Estado do Rio de Janeiro a apresentar planos de redução da letalidade policial.

Nesse cenário, o governador Castro joga simultaneamente para duas plateias contraditórias. Para o STF e para os setores mais progressistas, ele apresenta um plano de redução da letalidade e mostra dados que revelavam, até agora, uma redução da letalidade policial nos últimos três anos, como mostra o gráfico abaixo.

Fonte: Instituto de Segurança Pública. Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Redução registrada, diga-se de passagem, após a saída do governador Wilson Witzel que pregava atirar “na cabecinha” dos suspeitos e após a ADPF 635 em que o STF colocou limites às operações policiais.

Já para os defensores do “bandido bom é bandido morto”, Castro organizou algumas megaoperações policiais com números recordes de mortes, recordes agora amplamente quebrados. A operação do 28 de outubro foi tão letal que será muito improvável confirmar a redução da letalidade em 2025, o que tornará difícil continuar mantendo os dois discursos simultaneamente. Talvez, por isso, o governador tenha chamado justo agora a ADPF 635 de “maldita”.

Do ponto de vista tático, chama a atenção o alto número de mortos que têm sido retirados da mata. Até agora, a polícia do Rio não entrava na mata por considerá-la um terreno muito arriscado, nem sequer o Bope o fazia. Mas isso pode ter mudado agora e poderia ajudar a explicar também o alto número de policiais mortos.

Do ponto de vista discursivo, o governador usa o eufemismo “neutralizar” quando quer dizer matar, seguindo a mesma linguagem da proposta de lei que pretende recriar a “premiação faroeste”.

Mais preocupante ainda é o uso recorrente do termo “narcoterrorista” para designar os suspeitos, na esteira do governo Trump e de vários governos regionais como o de Equador e o de El Salvador.

Não existe uma definição universal de “terrorismo”, que continua sendo um termo em disputa, mas em geral considera-se terrorista quem persegue objetivos políticos de forma violenta, atacando a população civil. Nossas facções criminosas, brutais como elas são, almejam simplesmente o lucro.

A rigor, nenhuma legislação antiterrorista permite matar diretamente suspeitos de cometerem crimes, apenas costumam alongar prazos de detenção provisória e diminuir algumas garantias processuais.

Porém, o conceito de terrorista está sendo usado para justificar execuções sumárias, como as cometidas pelo governo dos EUA contra tripulantes de lanchas nas costas venezuelanas e colombianas. Aplica-se o direito de guerra (o Direito Internacional Humanitário) a situações de criminalidade onde vigora o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Na prática, supostos delinquentes são tratados como soldados inimigos a serem eliminados. Pena de morte sem julgamento, sem provas, sem direito de defesa. Garante-se assim que alguns inocentes serão também assassinados, tratados como baixas colaterais numa guerra, a guerra contra as drogas, que é impossível de ser vencida. Décadas, séculos de evolução jurídica e civilizatória são colocados em questão e a barbárie começa a ser normalizada. Hobbes que se cuide.


A publicação deste artigo foi financiada pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Share This Article
Sair da versão mobile