Em 7 de janeiro de 2025, quando Mark Zuckerberg – acionista majoritário do grupo Meta, composto por empresas como Facebook, Instagram e WhatsApp – comunicou o fim da ferramenta de checagem de fatos nas plataformas do conglomerado, ficou mais evidente uma mudança de rota das Big Techs. Tal decisão suscitou intensos questionamentos e análises que apontam para uma guinada à direita e uma aproximação com o presidente Donald Trump. Outras Big Techs seguem a mesma jornada – fato ilustrado pela presença maciça de executivos importantes desses conglomerados na posse do segundo mandato de Trump. Sem falar no protagonismo de Elon Musk – dono da rede social X (antigo Twitter), da fábrica de automóveis elétricos Tesla e da gigante privada da corrida espacial SpaceX -, na condição de chefe do recém-criado Departamento de Eficiência Governamental dos EUA.
A influência de magnatas da internet no governo Trump 2.0 já é evidente. Entretanto, reduzir essa influência a possíveis imposições unilaterais de um lado ou de outro seria simplificar demais a complexa sinergia entre as Big Techs, o governo Trump e o próprio Estado, que se beneficia de ganhos mútuos.
A ascensão das redes sociais digitais precisa ser compreendida dentro do contexto da disruptura das chamadas mídias tradicionais.
Por um lado, a transmissão de informações deixou de ser vertical – de emissor para receptor – e se transformou em uma rede horizontal onde qualquer usuário pode produzir e disseminar conteúdo, agravada pela isenção de responsabilidade das Big Techs.
Por outro, as plataformas digitais, pertencentes a conglomerados como Meta e Google, ao monetizarem dados, replicam o controle sobre o que podem ser compreendidas como verdadeiras celas cibernéticas que moldam a observação e a disciplina social.
Ilusão de liberdade e mecanismos de controle
Embora as redes sociais promovam a ilusão de autonomia e liberdade de expressão, elas também convertem essa liberdade em matéria-prima para mecanismos de vigilância e controle. Ao mesmo tempo que vigiamos, também somos vigiados – o usuário se torna simultaneamente carcereiro e prisioneiro de um sistema que, disfarçado de liberdade, impõe vigilância constante e disciplina sem que nos demos conta.
Ao olharmos retrospectivamente para a trajetória da Internet, a ideia de neutralidade rui – sobretudo em sua dimensão política – diante de episódios como o escândalo da Cambridge Analytica, de 2018. Ali, a coleta maciça de dados, combinada a técnicas avançadas de análise preditiva, expôs a fragilidade das salvaguardas digitais, ao permitir que modelos neurocognitivos sofisticados decodificassem padrões comportamentais e construíssem conteúdos altamente segmentados, transformando cidadãos em alvos passivos de manipulação psicológica.
Essa arquitetura de persuasão cibernética, que ultrapassa as campanhas eleitorais tradicionais ao operar na zona cinzenta entre publicidade, manipulação psicológica e engenharia social, torna-se peça-chave para a ascensão de líderes da extrema direita ao redor do mundo. A tecnologia, nesse contexto, evidencia não ser um instrumento neutro, mas sim um vetor ativo de polarização e desinformação atrelada à capacidade financeira.
A alegação do grupo Meta de desconhecimento quanto à apropriação indevida das informações de milhões de usuários por uma instituição privada levantou dúvidas sobre sua responsabilidade na gestão da privacidade, revelando a profundidade da conivência estrutural entre corporações tecnológicas e projetos políticos. Essa relação simbiótica expôs uma crise de responsabilidade, na qual as grandes plataformas se beneficiam no vácuo regulatório que lhes permite se esquivar de obrigações éticas e legais.
Desde então, intensos debates têm ocorrido nos EUA quanto à necessidade de regulamentar as Big Techs para maior responsabilização e proteção dos dados dos usuários. Nesse cenário, a Justiça dos Estados Unidos tem atuado com ações antitruste contra gigantes como Amazon, Apple, Google e Meta. A FTC aponta que as aquisições do Instagram (2012) e do WhatsApp (2014) foram estratégias para eliminar concorrentes e reforçar o oligopólio no mercado de redes sociais.
Guinada ideológica é estratégia contra regulamentação
Ao se alinharem com Trump, a guinada ideológica das Big Techs parece mitigar riscos oriundos dos intensos debates sobre a regulamentação de suas atividades, ao mesmo tempo em que oferta a Donald Trump e sua base política de extrema direita um ecossistema cibernético propício à disseminação de ideias extremistas – cenário que, contudo, não pode ser considerado o ponto final da análise.
O alerta de 2006 do matemático britânico Clive Humby que dados são o novo petróleo, ressoa com força. A Inteligência Artificial (IA) surge como ferramenta essencial para refinar esses dados, exigindo a geração, o fluxo, o armazenamento e o processamento de informações. Em um contexto de oligopólio transnacional, onde bilhões de usuários geram dados 24 horas por dia, esses conglomerados se revestem de imensa importância estratégica.
Desde o despertar – do momento em que um simples “bom dia” é enviado à Alexa ou via WhatsApp –, passando pelo trajeto definido no GPS, pela troca de e-mails no expediente, pela busca inocente no Google e pelas interações no Instagram, Facebook ou TikTok, até o monitoramento do sono, uma quantidade imensurável de dados é gerada, transportada e processada pelos serviços desses conglomerados. Esses dados alimentam algoritmos que influenciam desde hábitos de consumo até percepções sociais, definindo não apenas a eficiência dos serviços cotidianos, mas também o equilíbrio geopolítico em áreas críticas como segurança, economia e inovação.
O lançamento da DeepSeek, uma IA desenvolvida por uma startup chinesa homônima, evidenciou a disputa global nesse campo. Seus resultados, que impressionaram ao alcançarem desempenho de ponta com chips menos avançados – em comparação aos concorrentes estadunidenses –, foram interpretados como uma resposta às sanções impostas pelos EUA a empresas chinesas.
Em contrapartida, numa disputa que acontece cotidianamente sem nos darmos conta, em 23 de janeiro de 2025 o presidente Trump assinou a Ordem Executiva “Removendo barreiras à liderança americana em Inteligência Artificial”, que revogou políticas consideradas obstáculos à inovação e ao desenvolvimento tecnológico, mesmo diante de contradições éticas relativas à privacidade, direitos civis e à democracia.
Projeto Stargate e busca por hegemonia na IA
Nesse mesmo contexto, o governo norte-americano anunciou o projeto Stargate, com investimento inicial de US$ 100 bilhões e potencial expansão para US$ 500 bilhões em quatro anos, fruto de uma joint venture entre gigantes como OpenAI, Oracle e SoftBank. Esse empreendimento visa a reafirmar a hegemonia tecnológica dos EUA e de suas companhias, bem como maximizam as possibilidades de rentabilidade das Big Techs.
Ante os fatos apresentados, é possível afirmar que a dinâmica das megacorporações tecnológicas, em sua adaptação às novas configurações do poder global, não responde de forma passiva a um ambiente desregulamentado, mas se configura como um movimento estratégico no tabuleiro geopolítico desejado pelo próprio Estado americano.
A flexibilização das pressões regulatórias revela um realinhamento entre Estado e capital na corrida pela liderança em IA. Sob os mantos retóricos da liberdade de expressão e da inovação, esconde-se um projeto de poder que visa a assegurar a primazia estadunidense na definição dos padrões técnicos globais, subjugando nações e concentrando recursos em escala sem precedentes.
A narrativa da tecnologia como força neutra e equalizadora revela-se, portanto, utópica. Por trás do progresso técnico, operam mecanismos de dominação, vigilância e controle que convertem a ilusão de liberdade em instrumentos de poder, definindo os termos de uma nova ordem e os contornos de uma hierarquia interestatal cada vez mais rígida. As Big Techs, longe de serem meras executoras, emergem como atores geopolíticos fundamentais na consolidação da aliança orgânica entre capital e poder estatal.