Ad image

Biologia celular: A surpreendente jornada da proteína prion no cérebro

7 Min Read
Biologia celular: A surpreendente jornada da proteína prion no cérebro

Tudo começou com uma pergunta: por que uma proteína tão comum no cérebro está ligada a uma doença rara e devastadora, o “mal da vaca louca”? A proteína prion ficou famosa por sua capacidade de mudar de forma e formar agregados tóxicos que matam neurônios. Mas há cerca de 20 anos, nosso grupo fez um questionamento que mudou o rumo das investigações: será que essa proteína existe no cérebro apenas para causar doenças?

Após muitos anos de pesquisa em busca da resposta dessa intrigante questão, descobrimos que não. A proteína prion (ou PrP) é, na verdade, uma molécula fundamental para o funcionamento saudável do cérebro.

Reviravoltas da ciência

O início dessa jornada, no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, queríamos entender a importância da PrP no desenvolvimento cerebral. Nossos estudos revelaram que ela participa de processos essenciais como a diferenciação de neurônios, a formação de sinapses e a consolidação da memória de longa duração. Longe de ser uma vilã, a PrP mostrava seu lado protetor e essencial para a saúde neural.

Mas a história deu uma reviravolta. Sabendo do seu papel em doenças neurodegenerativas, nos perguntamos: e se a PrP também estivesse envolvida em outras doenças como o câncer? E evidências recentes mostraram que a PrP é sim produzida em excesso em diversos tipos de neoplasias, incluindo câncer de cólon, gástrico, pancreático e mamário, modulando processos cruciais para a progressão tumoral, como crescimento, metástase e resistência a terapias.

Partindo daí, nosso interesse se direcionou especificamente para tumores cerebrais, em especial o glioblastoma, o tipo mais agressivo e letal em adultos. Ao analisar amostras de pacientes, observamos que a PrP era muito mais abundante nos tumores de alto grau do que nos de baixo grau ou em tecidos saudáveis.

O momento decisivo veio quando, em modelos experimentais, ao bloquear a PrP e uma proteína parceira chamada STIP1, percebemos uma redução drástica no crescimento tumoral. Isso chamou nossa atenção: como uma proteína essencial para os neurônios estava, no contexto do câncer, impulsionando o tumor a crescer?

Prions e células-tronco tumorais

O glioblastoma é um dos maiores desafios da oncologia. A sobrevida média dos pacientes é de cerca de 15 meses, e o tratamento padrão praticamente não evoluiu nas últimas duas décadas. Esse câncer é notável por sua heterogeneidade, que não só varia entre pacientes, mas também dentro do mesmo tumor, com células distintas em forma, função e expressão gênica.

Nosso grupo queria decifrar se a PrP influenciava as chamadas células-tronco tumorais, consideradas as “raízes” do glioblastoma, responsáveis por sua agressividade e pela temida recorrência. Os estudos do nosso Laboratório de Neurobiologia e Células-tronco, atualmente no Instituto de Ciências Biomédicas da USP comprovaram que sim: a PrP e a STIP1 atuam diretamente nessas células, modulando sua proliferação e sobrevivência. Ao bloquear essas proteínas, os tumores se tornam menores e, o mais importante, mais vulneráveis.

Na imagem da esquerda, as células de glioblastoma crescem formando esferas em suspensão. Na imagem da direita, uma dessas esferas é colocada em uma superfície aderente, fazendo com que as células se espalhem ao redor. Esse comportamento lembra a maneira como o glioblastoma invade o cérebro.

Recentemente, por meio de uma colaboração do nosso grupo com pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos, descobrimos um mecanismo ainda mais intrigante: ao remover a PrP, o glioblastoma passa a se comportar como um subtipo menos agressivo e mais sensível a tratamentos.

Acreditamos que desvendar como uma célula antes resistente aos tratamentos se torna sensível à terapia é fundamental para abrir caminhos mais eficazes e duradouros contra o câncer. Essa descoberta sugere que a proteína prion atua como uma espécie de “chave biológica” que determina o quão agressivo e resistente o tumor será.

Durante o congresso internacional Prion 2025, realizado recentemente no Estado do Rio de Janeiro, pesquisadores de vários países discutiram as múltiplas facetas dessa proteína, desde suas funções fisiológicas no cérebro até o papel em doenças complexas como o câncer. Foi inspirador testemunhar como a comunidade científica está unida para decifrar um dos sistemas mais complexos do universo: o cérebro humano.

Para nós, as descobertas recentes ampliam o alcance da pesquisa. E nosso grupo tem investigado a PrP e seus parceiros moleculares, como a STIP1, e percebemos que essa história é mais ampla do que imaginávamos. Estudos recentes mostram que a STIP1 também está associada ao transtorno do espectro autista. É um novo capítulo que estamos começando a explorar.

Da neurodegeneração ao câncer e agora ao autismo, a trajetória da proteína prion revela como os mesmos mecanismos que sustentam a vida e o funcionamento do cérebro podem, em certos contextos, ser desviados para o desenvolvimento de doenças.

Compreender essas conexões é o primeiro passo para transformar o que aprendemos sobre o prion, de vilão a aliado, em novas estratégias terapêuticas capazes de impactar positivamente a sociedade. Embora estejamos apenas no começo, essa pesquisa, movida por paciência e curiosidade, tem um potencial transformador. Cada avanço nos aproxima um pouco mais de desvendar o cérebro, essa fascinante e inesgotável fronteira da ciência.


Esta pesquisa contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Share This Article
Sair da versão mobile