Tudo começou com uma pergunta: por que uma proteína tão comum no cérebro está ligada a uma doença rara e devastadora, o “mal da vaca louca”? A proteína prion ficou famosa por sua capacidade de mudar de forma e formar agregados tóxicos que matam neurônios. Mas há cerca de 20 anos, nosso grupo fez um questionamento que mudou o rumo das investigações: será que essa proteína existe no cérebro apenas para causar doenças?
Após muitos anos de pesquisa em busca da resposta dessa intrigante questão, descobrimos que não. A proteína prion (ou PrP) é, na verdade, uma molécula fundamental para o funcionamento saudável do cérebro.
Reviravoltas da ciência
O início dessa jornada, no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, queríamos entender a importância da PrP no desenvolvimento cerebral. Nossos estudos revelaram que ela participa de processos essenciais como a diferenciação de neurônios, a formação de sinapses e a consolidação da memória de longa duração. Longe de ser uma vilã, a PrP mostrava seu lado protetor e essencial para a saúde neural.
Mas a história deu uma reviravolta. Sabendo do seu papel em doenças neurodegenerativas, nos perguntamos: e se a PrP também estivesse envolvida em outras doenças como o câncer? E evidências recentes mostraram que a PrP é sim produzida em excesso em diversos tipos de neoplasias, incluindo câncer de cólon, gástrico, pancreático e mamário, modulando processos cruciais para a progressão tumoral, como crescimento, metástase e resistência a terapias.
Partindo daí, nosso interesse se direcionou especificamente para tumores cerebrais, em especial o glioblastoma, o tipo mais agressivo e letal em adultos. Ao analisar amostras de pacientes, observamos que a PrP era muito mais abundante nos tumores de alto grau do que nos de baixo grau ou em tecidos saudáveis.
O momento decisivo veio quando, em modelos experimentais, ao bloquear a PrP e uma proteína parceira chamada STIP1, percebemos uma redução drástica no crescimento tumoral. Isso chamou nossa atenção: como uma proteína essencial para os neurônios estava, no contexto do câncer, impulsionando o tumor a crescer?
Prions e células-tronco tumorais
O glioblastoma é um dos maiores desafios da oncologia. A sobrevida média dos pacientes é de cerca de 15 meses, e o tratamento padrão praticamente não evoluiu nas últimas duas décadas. Esse câncer é notável por sua heterogeneidade, que não só varia entre pacientes, mas também dentro do mesmo tumor, com células distintas em forma, função e expressão gênica.
Nosso grupo queria decifrar se a PrP influenciava as chamadas células-tronco tumorais, consideradas as “raízes” do glioblastoma, responsáveis por sua agressividade e pela temida recorrência. Os estudos do nosso Laboratório de Neurobiologia e Células-tronco, atualmente no Instituto de Ciências Biomédicas da USP comprovaram que sim: a PrP e a STIP1 atuam diretamente nessas células, modulando sua proliferação e sobrevivência. Ao bloquear essas proteínas, os tumores se tornam menores e, o mais importante, mais vulneráveis.
Recentemente, por meio de uma colaboração do nosso grupo com pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos, descobrimos um mecanismo ainda mais intrigante: ao remover a PrP, o glioblastoma passa a se comportar como um subtipo menos agressivo e mais sensível a tratamentos.
Acreditamos que desvendar como uma célula antes resistente aos tratamentos se torna sensível à terapia é fundamental para abrir caminhos mais eficazes e duradouros contra o câncer. Essa descoberta sugere que a proteína prion atua como uma espécie de “chave biológica” que determina o quão agressivo e resistente o tumor será.
Durante o congresso internacional Prion 2025, realizado recentemente no Estado do Rio de Janeiro, pesquisadores de vários países discutiram as múltiplas facetas dessa proteína, desde suas funções fisiológicas no cérebro até o papel em doenças complexas como o câncer. Foi inspirador testemunhar como a comunidade científica está unida para decifrar um dos sistemas mais complexos do universo: o cérebro humano.
Para nós, as descobertas recentes ampliam o alcance da pesquisa. E nosso grupo tem investigado a PrP e seus parceiros moleculares, como a STIP1, e percebemos que essa história é mais ampla do que imaginávamos. Estudos recentes mostram que a STIP1 também está associada ao transtorno do espectro autista. É um novo capítulo que estamos começando a explorar.
Da neurodegeneração ao câncer e agora ao autismo, a trajetória da proteína prion revela como os mesmos mecanismos que sustentam a vida e o funcionamento do cérebro podem, em certos contextos, ser desviados para o desenvolvimento de doenças.
Compreender essas conexões é o primeiro passo para transformar o que aprendemos sobre o prion, de vilão a aliado, em novas estratégias terapêuticas capazes de impactar positivamente a sociedade. Embora estejamos apenas no começo, essa pesquisa, movida por paciência e curiosidade, tem um potencial transformador. Cada avanço nos aproxima um pouco mais de desvendar o cérebro, essa fascinante e inesgotável fronteira da ciência.
Esta pesquisa contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
