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Brasil avaliará cursos de medicina, mas ainda perde oportunidade de melhorar formação profissional na área

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Brasil avaliará cursos de medicina, mas ainda perde oportunidade de melhorar formação profissional na área

Nos últimos meses, foram anunciadas duas medidas de alcance nacional no âmbito da formação médica: o Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (EnaMED) e a proibição da educação a distância para alguns cursos na área da saúde, dentre outros. No entanto, a oportunidade de abordar o papel da residência médica no país (ainda hoje desvinculada da graduação), que poderia ter grande impacto na qualificação dos futuros médicos, foi mais uma vez desperdiçada.

O EnaMED, lançado no final de abril, será uma prova anual com o objetivo de avaliar a qualidade dos cursos de medicina. Sua pontuação também poderá ser utilizada pelos estudantes no processo de ingresso em residências médicas (Exame Nacional de Residência – ENARE, semelhante ao Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM.

Em maio, foi publicada a proibição da oferta de ensino à distância (EaD) para cursos como Medicina, Enfermagem, Psicologia e Odontologia, que deverão ser ministrados exclusivamente no formato presencial. O gesto indica que há uma demanda por ajustes relevantes na qualificação da formação e ordenação de recursos humanos na área da saúde.

Segundo o painel do Sistema de Mapeamento da Educação na Saúde, o Brasil conta atualmente com mais de 60 mil vagas em 407 cursos de medicina, sendo que boa parte dessas vagas são recentes. O país tem 600 mil médicos ativos com uma má distribuição por região e dentro de macrorregiões, mas sobretudo por especialidades. Há mais oftalmologistas do que médicos de família e comunidade, por exemplo. Também já existem cidades com mais médicos do que a média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), de 3,5 por mil habitantes. Portanto, como prevalece a má distribuição por região e por especialidade, é consenso que a solução não passa apenas pela abertura de faculdades de medicina.

O EnaMED irá apenas escancarar o que já é evidente: muitas faculdades de medicina oferecem uma formação precária, colocando as pessoas em risco. Além disso, o novo exame também posiciona o governo federal na disputa com o Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem defendido uma prova semelhante à da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), de modo que nem todo médico formado teria o direito de exercer a profissão.

Países associam residência médica à formação

A medicina, porém, tem uma especificidade que é a residência médica. Trata-se de uma modalidade de pós-graduação lato sensu, consolidada em todo mundo desde a segunda metade do século XX, voltada para a formação em serviço em determinada área. Existem residências com formação mais geral, como medicina de emergência ou medicina de família e comunidade (que manteve o nome clínica geral em países como Inglaterra e Austrália, mesmo após o advento da residência), e outras mais específicas, como ortopedia ou cardiologia.

O Brasil comete o equívoco de não associar a política de formação médica com a residência médica. Em outras palavras, o diploma de médico (obtido ao concluir os seis anos de curso de Medicina) não exige a realização de residência médica para ser válido. Basta ter concluído a faculdade e obtido registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) para exercer a profissão.

A residência não tem apenas a função de formação, mas também, e sobretudo, de ordenar os recursos, direcionando-os de acordo com a necessidade do sistema. Em praticamente todos os países desenvolvidos, além de ser obrigatória para o exercício de qualquer especialidade, a residência é mandatória mesmo para exercer a medicina de família e comunidade (clínica geral) ou para atuar em emergências desde a década de 1990.

Nesses países, a distribuição das vagas de residência se dá de forma centralizada, seguindo estudos da necessidade do sistema mesmo quando os serviços são privados. Essa é uma política extremamente custo-efetiva, pois evita o desperdício de recursos e já direciona os alunos, fazendo com que a formação se adapte à necessidade e não ao mercado ou mesmo ao glamour de determinadas especialidades.

Para exemplificar, o Canadian Residence Matching Service (CARMS) que regula e distribui as vagas de residência médica em todo Canadá, determinou em 2025 a oferta de 3.942 vagas, número um pouco superior à quantidade de egressos de medicina naquele país. Dessas vagas, 1.821 são para medicina de família, e 2.121 vagas para todas as outras especialidades, sendo 43 para oftalmologia e 32 para dermatologia. Além de impedir automaticamente quem não fez residência de trabalhar como médico na maioria das áreas, esta forma de distribuição das vagas no Canadá informa o sistema que o exame de refração será feito pelo optometrista, sendo que o oftalmologista fica dedicado aos procedimentos mais especializados como cirurgias. Determina também que a parte estética não está no escopo da dermatologia, que deve se concentrar em doenças como câncer de pele, e que condições frequentes, como micose, são de responsabilidade de médicos de família.

Os próprios dermatologistas canadenses não querem tratar micose, o cardiologista não é o responsável pela hipertensão essencial, o psiquiatra não precisa se dedicar à depressão leve e ansiedade, e assim por diante. Nenhum médico depende de divulgação em redes sociais para encher o consultório. Há uma distribuição racional da demanda e o sistema fica mais eficiente.

A residência médica tem um papel fundamental na formação e na organização do sistema de saúde. Apesar de ser vantajosa para o país, a experiência internacional da residência médica mandatória com distribuição de vagas centralizada não é uma tarefa fácil, pois se confronta com a cultura de valorização do super especialista em detrimento do generalista, mesmo com formação através de residência, que foi exaustivamente difundida pelas próprias entidades médicas.

Certamente haverá resistência de diversos atores que se beneficiam do sistema como ele está atualmente em contraposição a tornar a residência médica mandatória. O Exame Nacional de Residência (ENARE) pode representar uma luz no fim do túnel se, ao unificar o acesso à residência, promover a distribuição das vagas conforme a necessidade e o sistema de saúde almejado: custo-efetivo, equânime e universal de fato.

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