Depois de construir a chamada ordem internacional liberal após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos parecem estar agora empenhados em sua demolição. Nas mãos de seu presidente, tarifas comerciais são instrumento de pressão bilateral cujos efeitos aceleram a erosão institucional, não apenas do cambaleante sistema multilateral de comércio, mas do tecido multilateral em geral.
No caso específico do Brasil, há ainda um objetivo adicional e inequívoco: aumentar os custos de uma política externa orientada por uma estratégia de não-alinhamento e pelo objetivo de sustentar e reformar o sistema multilateral à luz de uma distribuição de poder multipolar.
A carta divulgada na semana passada nas redes sociais pelo governo Trump não deixa dúvidas. O documento relaciona o aumento de tarifas a decisões e processos em curso no STF que não estão sujeitas a qualquer negociação sem que haja uma ruptura do estado de direito no Brasil. Ora, uma vez que os argumentos técnicos adicionalmente apresentados não encontram correspondência na realidade, a posição da Casa Branca não deixa qualquer espaço de manobra para o governo brasileiro, pelo menos nos termos apresentados. Como compreender, então, o sentido das medidas tarifarias e as ameaças contidas na carta?
No lugar de normas universais, acordos bilaterais
Em primeiro lugar, do ponto de vista sistêmico, a iniciativa da administração Trump joga uma última pá de cal em um sistema de comércio baseado em normas universais. Em seu lugar, a Casa Branca busca construir uma coleção de acordos bilaterais orientados por interesses imediatos dos Estados Unidos e estabelecidos em condições de assimetria extrema. Cabe destacar que tais acordos podem conter provisões de posicionamento geopolítico dependendo do país em tela.
Em segundo lugar, ainda que o resultado possa parecer improvável, há uma expectativa de transformação do regime democrático brasileiro na direção da escalada autoritária experimentada nos Estados Unidos. Medidas adicionais como sanções individuais a autoridades brasileiras ou outras sanções econômicas podem vir a corroborar essa hipótese.
Finalmente, considerando a série de ameaças registradas pelo presidente americano às vésperas da cúpula do BRICS, é possível identificar um terceiro sentido das medidas anunciadas: o aumento dos custos do não-alinhamento ou do múltiplo alinhamento, hipótese que deve ser seriamente considerada.
Nova ordem é baseada na coação econômica, política e militar
O governo Trump toma atitudes unilaterais, mas isso não pode se confundir com isolacionismo. Ao contrário, está comprometido com o estabelecimento de uma ordem internacional sustentada pelo exercício sem peias da coação econômica, política e militar. Ao determinar tarifas punitivas, Trump pretende exatamente limitar o espaço de não-alinhamento no plano internacional, particularmente de potências médias como o Brasil.
Seja por sua aliança ao clã Bolsonaro, seja pelo fato do Brasil ter recebido a cúpula do BRICS, o fato é que a carta enviada ao Brasil foi, de longe a mais dura desse primeiro grupo de países sob ataque. No marco do BRICS, África do Sul e Indonésia também sofreram ataques. Nos dois casos, porém, o aumento das tarifas é justificado por supostas assimetrias, no primeiro caso, e desequilíbrios, no segundo. Nesse momento, tanto o presidente Ramaphosa, quanto o Ministro Hartarto (negociador da Indonésia) correm contra o tempo para negociar termos melhores para acordos bilaterais. Sem comprometer suas instituições, o governo brasileiro irá provavelmente buscar abrir canais de negociação para, tecnicamente, diminuir o impacto das tarifas.
Ao buscar negociar individualmente com Washington, cada um desses países, incluindo parceiros desenvolvidos como o Japão e a Coreia do Sul, irá ocupar uma posição de negociação assimétrica que terá impactos negativos nos acordos que vierem a assinar. Ademais, é possível supor que tais acordos tragam embutidas cláusulas espúrias que limitam o relacionamento desses países com a China (ou nos termos de Trump, ao alinhamento com políticas adotadas por grupos como o BRICS).
Nesse sentido, o desafio enfrentado pelo Brasil e demais potências médias (para não mencionar aqueles que até aqui eram considerados aliados dos Estados Unidos), diz respeito, não apenas à proteção de suas economias, mas também do espaço necessário para a formulação de uma política externa autônoma.
Para o Brasil, mais especificamente, o desafio diz respeito às condições para sustentar uma posição de não-alinhamento ou de múltiplos alinhamentos. Nenhum desses países é capaz, individualmente, de manter essa posição, em razão da ausência de capacidades materiais para tanto.
Contudo, restaurar um movimento de países não-alinhados adaptado às circunstâncias contemporâneas supõe enfrentar severos problemas de ação coletiva. Para além da redução dos danos resultantes dos ataques unilaterais dos Estados Unidos, o Brasil e seus pares precisam criar condições para ação coordenada.
A participação do Brasil em grupos como BRICS, o avanço das negociações do acordo MERCOSUL-União Europeia e mesmo a acessão à OCDE são ações importantes que compõem uma estratégia de diversificação e não-alinhamento. Diversificação reduz a exposição a uma única potência, mas não é suficiente para enfrentar os desafios dessa quadra.
É hora de conter a potência intervencionista
É chegada a hora de conter a potência intervencionista e lançar um movimento mais amplo para a reconstrução do tecido multilateral internacional, a partir de princípios claros de justiça e equidade. No entanto, considerados os instrumentos de incentivo e coação à disposição dos Estados Unidos, as diferentes escalas de preferências das potências médias e até mesmo a dinâmica competitiva em que muitas delas estão envolvidas, é difícil enxergar um cenário positivo. Ademais, são escassas as experiências históricas que nos autorizariam imaginar ser possível a reconstrução da ordem internacional sem a participação da superpotência de plantão. Trata-se, portanto, de uma tarefa hercúlea.
Nos últimos meses, os presidentes do Brasil, África do Sul e Espanha, e seus ministros das finanças, têm publicado artigos de opinião em defesa do multilateralismo. Se por um lado, essa é uma agenda central para enfrentar os ataques demolidores da grande potência, por outro lado, ela exige mais que declarações. A tarefa exige a construção de espaços políticos isonômicos em torno de agendas e programas concretos, a exemplo da reconstrução do sistema multilateral de comércio. Para tanto, é necessário fortalecer a confiança e oferecer compromissos concretos com vistas ao estabelecimento de mecanismos de segurança econômica coletiva.