As relações entre Brasil e Estados Unidos, que completaram dois séculos em 2024, refletem uma interação histórica entre interesses econômicos e políticos. De uma cooperação focada em commodities no século XIX, a parceria evoluiu para uma agenda multifacetada que hoje envolve tecnologia, segurança, clima e cadeias globais de valor. Essa trajetória, entretanto, é marcada por assimetrias que se aprofundam no atual contexto de competição global e no segundo mandato de Donald Trump.
A política norte-americana recente tem se caracterizado por táticas geoeconômicas. Entre elas, a manipulação da interdependência econômica como uma ferramenta central de poder, transformando a interdependência econômica em um mecanismo de pressão política contra outros países. Geoeconomia, nesse contexto, refere-se ao uso de instrumentos econômicos — como tarifas, sanções, restrições a investimentos e controle de fluxos financeiros — para alcançar objetivos geopolíticos, ou seja, metas que buscam moldar o ambiente internacional de forma favorável aos interesses dos Estados Unidos.
Esses objetivos podem envolver a garantia da segurança nacional, protegendo cadeias produtivas críticas; ampliar zonas de influência, por meio de investimentos ou créditos que aproximem países de sua órbita política; proteger setores essenciais, como tecnologia e energia. Podem, ainda, condicionar comportamentos de outros países, impondo custos econômicos para forçar mudanças de política comercial, diplomática ou regulatória.
Essa lógica dialoga com a geopolítica, que envolve o uso coordenado de poder militar, diplomático e econômico para garantir segurança e projetar influência no sistema internacional.
As políticas coercitivas de Trump
Nos anos 1990 e 2000, a interdependência era celebrada como motor de integração e cooperação global, vista como um caminho para reduzir riscos de conflito. Hoje, no entanto, esse mesmo ambiente é manipulado como um jogo de soma zero, no qual vulnerabilidades econômicas são exploradas para impor custos e extrair concessões, convertendo um mecanismo antes positivo em uma ferramenta de coerção e barganha.
Para o Brasil, esse cenário ficou evidente com a imposição de tarifas unilaterais sobre aço, alumínio, produtos do agronegócio e bens industriais, baseadas principalmente na Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962. Essa legislação permite ao presidente norte-americano adotar medidas quando importações são consideradas uma ameaça à segurança nacional.
No segundo mandato de Donald Trump, essas tarifas foram ampliadas e associadas a outras medidas, como as previstas na Seção 301 do Trade Act de 1974 e no International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), intensificando os custos para setores cruciais da economia brasileira.
O impacto dessas ações foi profundo. Empresas brasileiras ligadas à siderurgia, ao agronegócio e à indústria de transformação foram forçadas a rever suas cadeias produtivas, buscar mercados alternativos menos vantajosos e negociar sob maior pressão. Esse movimento evidencia como os Estados Unidos, ao controlarem nós centrais do comércio global e dos fluxos financeiros, conseguem manipular vulnerabilidades estruturais para obter ganhos relevantes junto aos demais países.
Essa prática não se limita ao Brasil. Em 2025, Donald Trump desprezou as disposições estabelecidas no acordo United States – Mexico – Canada Agreement de 2020 (USMCA), impondo tarifas sobre produtos vitais exportados pelo Canadá e pelo México, como aço, alumínio e automóveis, comprometendo setores essenciais para a manutenção das economias desses países. Ao explorar a alta interdependência econômica que caracteriza as relações comerciais entre os três países, Washington intensificou a pressão sobre seus vizinhos, obrigando-os a rever compromissos anteriores e aceitar novas condições. Essa postura expôs a vulnerabilidade comercial de Canadá e México diante do mercado norte-americano e reforçou a capacidade dos EUA de moldar cadeias regionais de valor, reposicionando-as em benefício de suas próprias indústrias e consolidando seu controle sobre setores considerados cruciais para sua segurança e competitividade.
Interesses em comum
Para o Brasil, os impactos econômicos vão além da perda imediata de mercado. Há efeitos sobre arrecadação fiscal, empregos e investimentos em setores-chave, ampliando a necessidade de diversificação de mercados, fortalecimento de cadeias produtivas internas e desenvolvimento de instrumentos de defesa comercial mais sofisticados. Apesar de iniciativas como o acionamento de mecanismos da OMC e programas de apoio a exportadores, o país ainda carece de uma política geoeconômica coesa que alinhe diplomacia e política industrial, capaz de mitigar sua vulnerabilidade na competição entre Estados Unidos e China.
No plano regional, a fragmentação da América Latina agrava esses desafios. Enquanto a China amplia investimentos em infraestrutura, energia e minerais, e os Estados Unidos reforçam sua presença com tarifas e sanções, os países latino-americanos continuam competindo entre si, em vez de coordenar estratégias conjuntas. Essa desunião enfraquece a capacidade de barganha regional e perpetua um modelo de dependência baseado na exportação de produtos de baixo valor agregado.
O Brasil, maior economia da região e detentor de reservas de minerais críticos, como nióbio e terras raras, está em posição privilegiada para liderar uma agenda de integração que ultrapasse barreiras ideológicas. Ao articular uma cooperação pragmática com países como Chile, Uruguai, Bolívia, Argentina, Colômbia e Peru, o país poderia estruturar cadeias regionais de valor, fortalecer a resiliência frente à pressão das grandes potências e aumentar sua influência em temas vitais para o atual momento, como a transição energética, os semicondutores e a inteligência artificial.
A relação com os Estados Unidos continuará sendo central, mas o caminho para um relacionamento mais equilibrado exige pragmatismo, diversificação de parcerias e uma base regional sólida. Transformar os ativos geoeconômicos em instrumentos de negociação é crucial para que o Brasil amplie sua autonomia em um sistema internacional cada vez mais fragmentado e competitivo. Ao mesmo tempo, é essencial evitar que a crescente presença chinesa se traduza em novas formas de dependência, substituindo uma relação de vulnerabilidade por outra.
Somente uma estratégia proativa, que alinhe diplomacia, inovação tecnológica e sustentabilidade, permitirá ao Brasil e à América do Sul se posicionarem como atores influentes na governança dos recursos críticos que moldarão a economia e a geopolítica global nas próximas décadas.