Ad image

Brasil ignora potenciais hidrelétricos e híbridos que poderiam impulsionar transição energética com justiça territorial

12 Min Read
Brasil ignora potenciais hidrelétricos e híbridos que poderiam impulsionar transição energética com justiça territorial

Em algum lugar do interior do Brasil, uma pequena barragem repousa silenciosa. Construída há décadas para irrigação ou controle de cheias, ela tem estrutura intacta, lâmina d’água constante e acesso fácil — mas não gera um único quilowatt. Essa cena se repete em centenas de municípios: obras hídricas subutilizadas, invisíveis ao planejamento energético nacional.

Enquanto o país discute grandes usinas e parques solares em escala industrial, ignora o potencial de geração elétrica que já existe, disperso pelo território, esperando apenas ser reconhecido. Este artigo propõe uma mudança de olhar: e se a transição energética brasileira começasse pelas pequenas barragens? E se, em vez (ou além) de buscar soluções distantes, o país mapeasse o que já tem — e integrasse essas estruturas a um sistema mais limpo, descentralizado e justo?

O potencial esquecido

O Brasil tem milhares de pequenas barragens espalhadas pelo seu território, construídas ao longo das décadas para fins de irrigação, abastecimento, controle de cheias ou uso industrial. Muitas delas contam com estrutura física preservada, acesso facilitado e regime hídrico estável (ou pelo menos bem conhecido) — mas não estão conectadas ao sistema elétrico. Segundo estimativas de órgãos como a Agência Nacional de Águas (ANA), o Departamento Nacional de Infraestrutura de Trancposrtes (DNIT) e a Companhia de Pesquisas em Recursos Minerais (CPRM), há um número expressivo de obras hídricas subutilizadas, cujo potencial energético permanece invisível ao planejamento nacional.

Essas estruturas poderiam ser reaproveitadas para geração elétrica em pequena escala, especialmente em arranjos híbridos com energia solar e-ou com energia eólica. A complementaridade entre sol e água — com geração solar durante o dia e hídrica à noite (ou, de modo mais completo, principalmente com geração solar em períodos de maior insolação e com geração hidrelétrica nos períodos de chuvas) — permite maior estabilidade e previsibilidade. Além disso, o uso de infraestrutura já existente reduz custos e impactos ambientais, evitando intervenções em áreas sensíveis.

Historicamente, os usos consuntivos e a geração de energia hidrelétrica sempre foram apresentados como conflitantes e opostos, pois a necessidade de gerar energia hídrica de forma contínua ou ao menos por muitos dias do ano era a única forma de viabilizar a construção e operação das barragens. As regras de operação de reservatórios dos aproveitamentos hidrelétricos geram limitações a usos consuntivos, tanto a montante quanto a jusante. No entanto, com sistemas híbridos, essa premissa não é necessariamente verdadeira e as barragens de acumulação projetadas para outras finalidades podem ser utilizadas para geração de energia, com evidentes vantagens.

O Cadastro Nacional de Usuários de Recursos Hídricos (CNARH) apresenta atualmente 27.392 registros de barragens, das quais apenas 1.559 são identificadas como “geração de energia hidrelétrica”. O potencial energético inexplorado poderia iniciar com esses registros, mesmo que o sistema não tenha sido concebido para tal finalidade. Um mapeamento estratégico seria o primeiro passo para transformar passivos territoriais em ativos estratégicos para a transição energética.

Por que isso importa para a transição energética?

A transição energética brasileira exige mais do que grandes projetos e metas ambiciosas. Ela precisa ser territorializada, acessível e conectada às realidades locais. O reaproveitamento de pequenas barragens oferece justamente isso: uma forma de ampliar a geração elétrica com baixo impacto ambiental, menor custo de implantação e uso inteligente de infraestrutura já existente.

Além disso, a combinação entre geração hídrica e solar — especialmente em arranjos híbridos (que podem também incluir energia eólica) — permite maior previsibilidade e estabilidade no fornecimento. Enquanto o sol brilha durante o dia, a água pode gerar à noite ou em períodos nublados, criando um sistema complementar e resiliente. Em regiões rurais e semiáridas, onde o acesso à energia ainda é limitado ou instável, essas soluções podem representar inclusão energética real.

O aproveitamento das estruturas de descargas de irrigação e abastecimento público para implantação de turbinas é de fácil implantação e não altera a vazão destinada aos usos principais. Além disso, a geração de energia na época de irrigação, na mesma região da demanda energética para bombeamento, pode resultar em uma redução da sobrecarga do sistema de distribuição.

Mais do que uma alternativa técnica, esse caminho representa uma oportunidade de acelerar a transição com justiça territorial, aproveitando o que já existe e distribuindo os benefícios da energia limpa de forma mais equitativa.

Descentralização como chave para o reaproveitamento

A descentralização da geração elétrica é mais do que uma tendência tecnológica — é uma mudança de paradigma. Ao reaproveitar pequenas barragens para geração hídrica ou híbrida, o Brasil pode transformar estruturas esquecidas em ativos energéticos locais. Essas obras, muitas vezes próximas a comunidades rurais, escolas, cooperativas ou pequenas indústrias, têm o potencial de se tornar pontos de geração distribuída, geridos de forma compartilhada ou comunitária.

Essa abordagem permite que a energia deixe de ser um sistema distante e centralizado, e passe a ser parte do cotidiano das pessoas. Como mostram experiências europeias, o autoconsumo coletivo têm ampliado o engajamento dos cidadãos e fortalecido práticas de cidadania ativa. No Brasil, o reaproveitamento dessas barragens pode seguir caminho semelhante — conectando energia, território e protagonismo local. A descentralização, nesse contexto, não é apenas técnica: é pedagógica, política e profundamente democrática.

Um exemplo: A barragem Val de Serra, no RS

Um exemplo concreto (que não é o único!) desse potencial é a barragem de Val de Serra, integrante do sistema de abastecimento da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Um estudo de doutorado (defendido em 2022 na UFRGS) avaliou o aproveitamento visando geração híbrida de energia da barragem originalmente projetada para abastecimento de água. O estudo demonstrou que, ao integrar geração hidrelétrica e fotovoltaica, seria possível ofertar cerca de 227 kW de potência hidrelétrica e 370 kWp de potência fotovoltaica ao sistema interligado.

Esse caso ilustra como estruturas já existentes, muitas vezes invisíveis ao planejamento energético, podem ser transformadas em ativos híbridos capazes de fornecer energia limpa, previsível e distribuída. Mais do que números, o trabalho evidencia que a descentralização não é apenas uma ideia abstrata: ela pode ser materializada em projetos viáveis, tecnicamente sólidos e alinhados à transição energética.

Além disso, essa pesquisa destaca uma solução engenhosa: o uso de bombas centrífugas operando em modo reverso, como turbinas. Essa alternativa aproveita a ampla disponibilidade e o baixo custo desses equipamentos, produzidos em grande escala para diversas aplicações, incluindo os setores de saneamento e irrigação. Ao adaptar bombas convencionais para geração de energia, é possível reduzir significativamente os custos de implantação (ou de adaptação de estruturas previamente existentes) e manutenção, ao mesmo tempo em que se amplia a viabilidade técnica e econômica de projetos de pequeno porte. Essa estratégia mostra que a inovação, muitas vezes, pode não estar em tecnologias inéditas, mas na reinterpretação de equipamentos já consolidados, aplicados de forma criativa ao contexto da transição energética.

Essa potência pode parecer modesta quando analisada isoladamente, sobretudo em comparação com grandes usinas hidrelétricas ou parques solares centralizados. No entanto, integrada a um projeto nacional de incentivo ao aproveitamento de pequenos potenciais e articulada em redes regionais de geração distribuída, ela se torna parte de um mosaico energético muito mais robusto.

A soma de dezenas ou centenas de iniciativas semelhantes pode representar uma contribuição significativa para o sistema interligado, ao mesmo tempo em que fortalece a resiliência local, reduz perdas de transmissão e valoriza recursos renováveis disponíveis no próprio território. Em outras palavras, o que parece pequeno em escala individual pode, em conjunto, compor um cenário estratégico de transição energética descentralizada e justa, no qual cada barragem esquecida passa a desempenhar um papel ativo.

O que falta: regulação, mapeamento e vontade política

Apesar do potencial evidente, o reaproveitamento de pequenas barragens para geração elétrica enfrenta barreiras institucionais e regulatórias. A microgeração hídrica ainda é pouco contemplada nas políticas públicas, e os arranjos híbridos — que combinam água e sol — carecem de diretrizes claras para viabilização técnica e jurídica.

Além disso, há uma fragmentação entre os órgãos responsáveis: agências reguladoras, instituições de pesquisa, estados e municípios operam com lógicas distintas, sem articulação suficiente para transformar essas estruturas em ativos energéticos. O país precisa de uma política integrada que reconheça o valor dessas barragens e incentive seu reaproveitamento — seja por meio de cooperativas, concessões locais ou projetos públicos. Sem vontade política, o concreto seguirá parado, e a energia seguirá ausente.

A alteração da Lei 12334/2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens, pela Lei 14066/2020, é um avanço a ser comemorado: as barragens de usos múltiplos podem ser outorgadas pelos órgãos gestores de recursos hídricos como um processo normal envolvendo barragens de acumulação. A ANEEL passa a ser responsável pela autorização apenas das estruturas que tenham preponderantemente a finalidade de geração hidrelétrica.

Reaproveitar barragens é escolha política, ambiental e social

A transição energética brasileira não precisa começar do zero. Ela pode começar onde já existe concreto, água e sol. As pequenas barragens espalhadas pelo país são testemunhas silenciosas de um planejamento que esqueceu o território — mas que pode ser redirecionado. Reaproveitá-las não é apenas uma questão técnica: é uma escolha política, ambiental e social. É reconhecer que há energia onde há gente, e que o futuro pode ser construído com o que já temos.

Ignorar essas estruturas é desperdiçar potência, território e oportunidade. Melhorar o registro do CNARH, integrar políticas públicas e abrir espaço para arranjos locais são passos urgentes para transformar passivos em ativos. Porque, no fim das contas, a energia que transforma o Brasil pode estar mais perto do que imaginamos — fluindo silenciosa, à espera de ser aproveitada.

Share This Article
Sair da versão mobile