As mudanças climáticas e a poluição por microplásticos podem afetar diretamente a biodiversidade de fungos aquáticos dos igarapés amazônicos. Esses micro-organismos são invisíveis aos nossos olhos, mas cumprem um papel central ao decompor folhas e garantir o fluxo de nutrientes nos ambientes de água doce.
Com menos fungos, há uma menor decomposição dos igarapés, o que significa menos nutrientes disponíveis na água, menos alimento para organismos aquáticos, e consequentemente, alterações em toda a cadeia alimentar. Isso afeta desde insetos até peixes e pode impactar indiretamente atividades como a pesca, a segurança alimentar de muitas comunidades (na Amazônia, o peixe é uma das principais fontes de proteína para grande parte da população) e até o abastecimento de água.
A perda da biodiversidade de fungos aquáticos pode gerar problemas no ciclo do carbono e na qualidade da água. Eles são como os recicladores do ecossistema: quando eles não funcionam bem, o ciclo de nutrientes é comprometido, o que pode afetar toda a vida aquática.
Futuro em miniatura
Isso é o que mostrou um novo estudo realizado por cientistas da Universidade Federal do Pará (UFPA), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Realizada no projeto ADAPTA II (Adaptações da Biota Aquática da Amazônia, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA) e intitulada Climate change and microplastic effects on conidial fungal assemblages associated with leaf litter in an Amazonian stream, a pesquisa foi publicada na revista científica Science of The Total Environment (STOTEN).
O estudo foi conduzido em câmaras climáticas experimentais, que é uma infraestrutura única no Brasil, localizada em Manaus (AM), que simula os cenários futuros de temperatura e concentração de gás carbônico (CO₂), além de diferentes níveis de contaminação por microplásticos.
Na pesquisa, criamos um “futuro em miniatura” para entender como os micro-organismos que mantêm os igarapés funcionando vão reagir às mudanças que já estão em curso. A pesquisa traz lições importantes para o debate climático global, especialmente em um momento em que a Amazônia se prepara para sediar a COP 30 em novembro de 2025.
Diferente da maioria dos estudos que usam valores fixos de temperatura e CO₂, essas câmaras climáticas registram e atualizam esses parâmetros em tempo real, com base nos dados coletados em um fragmento de floresta urbana em Manaus. Isso nos permite simular de forma muito mais precisa o que poderá acontecer nos igarapés amazônicos sob mudanças climáticas.
Simulação de cenários climáticos
Nessas câmaras, observamos como as espécies da região reagem fisiológica, ecológica e comportamentalmente ao aquecimento global, contribuindo com dados fundamentais para a formulação de políticas públicas para a conservação da biodiversidade.
Os fungos estudados na pesquisa são conhecidos como fungos conidiais. Eles decompõem as folhas que caem na água provenientes da vegetação ripária (a vegetação que circunda os riachos), reciclam nutrientes e sustentam toda a cadeia alimentar aquática.
Para entender como esses organismos respondem às ameaças ambientais, simulamos três cenários climáticos. O primeiro é o controle, com as condições ambientais que estamos vivendo no momento, utilizando os valores em tempo real de temperatura e CO2.
O cenário intermediário tem uma temperatura aumentada em 3,3°C, enquanto a concentração de CO2 sofre um aumento de +702 partes por milhão por volume (ppmv) sobre os valores do cenário de controle, que é baseado na concentração de CO2 da floresta urbana que monitoramos e que tinha, em média, 386 ppmv.
Por fim, um cenário extremo: +5,1°C; +1089 ppmv CO2. Todos esses cenários foram baseados em projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Também foram testadas ainda diferentes concentrações de microplásticos. No cenário controle, essa concentração foi 0. No cenário seguinte, tivemos uma concentração de 18 partes por partículas por mililitro (part./ mL). Essa medida se refere à quantidade de partículas de microplástico tem em cada mililitro de água do igarapé. No pior cenário, a concentração era de 180 part./ mL.
Na pesquisa, folhas de uma espécie nativa de árvore da floresta amazônica, conhecida popularmente na região como “Canelão” e “Louro-preto” (Nectandra cuspidata Nees), foram submersas em um igarapé para serem colonizadas por fungos aquáticos e posteriormente expostas nas câmaras climatizadas. Analisamos então quantas espécies de fungos aquáticos conseguiram sobreviver e se reproduzir, sendo capazes de desempenhar seu principal papel ecológico: a participação na decomposição foliar.
Problema em escala global
Os resultados são preocupantes. A combinação dos cenários de mudanças climáticas e das concentrações de microplásticos teve um impacto ainda mais forte na reprodução dos fungos do que cada um desses estressores separadamente.
No cenário climático intermediário, somado à maior concentração de microplástico, observou-se uma queda acentuada na produção de esporos, que é crucial para a dispersão e manutenção das populações fúngicas. Se reduzida, pode comprometer a saúde dos riachos amazônicos.
Curiosamente, no cenário mais extremo, com as temperaturas mais altas e maior concentração de microplástico, houve um aumento nessa produção. Esses padrões detectados indicam que as mudanças climáticas previstas para acontecer na Amazônia até o ano de 2100, associadas à poluição por microplásticos, podem alterar o ciclo reprodutivo dos fungos aquáticos. Além disso, nossa descoberta sugere que a interação entre esses estressores pode gerar efeitos inesperados, o que dificulta previsões precisas.
Curiosamente, a riqueza de espécies fúngicas, ou seja, o número total de espécies, não diminuiu ao longo do experimento, sugerindo que as espécies são resilientes. No entanto, tanto os cenários de mudanças climáticas quanto as concentrações de microplásticos alteraram significativamente a composição da comunidade, ou seja, quais espécies passaram a dominar em cada situação, e esses dois fatores atuaram de forma independente.
Essa mudança na composição pode favorecer espécies fúngicas menos eficientes na decomposição dos detritos foliares, reduzindo a velocidade de reciclagem de nutrientes e carbono, afetando o funcionamento dos igarapés e toda a cadeia alimentar associada.
A decomposição microbiana, realizada principalmente por fungos, também foi prejudicada pelos dois estressores ambientais, resultando na desaceleração da quebra da matéria orgânica. Essa desaceleração compromete um processo essencial para manter a saúde dos igarapés amazônicos e controlar o ciclo do carbono nesses ecossistemas. Além disso, a decomposição mais lenta também afeta a liberação de gases como o CO₂ e o metano, o que pode retroalimentar o aquecimento global. Por fim, a alteração na decomposição dos igarapés pode ainda afetar na potabilidade da água e, com isso, diminuir o acesso a esse recurso tão essencial para a vida humana.
Em outras palavras, os impactos nas funções ecológicas dos igarapés não são apenas locais, eles têm o potencial de repercutir em escala global. Os resultados são alarmantes e indicam desafios significativos para o futuro dos igarapés amazônicos.
Uma aliada promissora
Outro achado importante do estudo está relacionado à colonização das folhas pela espécie fúngica Pestalotiopsis microspora, que tem sido relatada em estudos científicos na Amazônia como capaz de degradar plásticos do tipo poliuretano. Essa espécie apresentou maior produção de esporos justamente nos microcosmos com maior concentração de microplástico.
Isso pode indicar que essa espécie tem potencial para degradar outros tipos de plásticos também. Esse resultado abre caminho para futuras pesquisas voltadas à biorremediação, ou seja, ao uso de organismos vivos como soluções biotecnológicas para a descontaminação de ambientes poluídos por plásticos. A P. microspora pode se tornar uma aliada promissora no combate à poluição plástica em ecossistemas aquáticos.
Cápsula do tempo
Esse tipo de experimento ajuda a antecipar as consequências antes que elas ocorram de forma irreversível na natureza. É como se estivéssemos testando a resiliência dos ecossistemas amazônicos em uma cápsula do tempo.
Estudos como este ajudam a preencher uma lacuna em estudos dessa natureza no Hemisfério Sul e mostram que os impactos ambientais amazônicos precisam ser estudados na Amazônia e com sua biodiversidade. Só conhecendo esses padrões podemos planejar ações eficazes de mitigação e adaptação que façam sentido para a Amazônia.
Proteger os pequenos organismos que sustentam o funcionamento dos ecossistemas é tão urgente quanto preservar as grandes paisagens. Compreender o que acontece nos igarapés é fundamental para entender como a Amazônia responde ou resiste às mudanças do planeta.