Calamidades climáticas, como a vivida há quase um ano pela população do Rio Grande do Sul, não fazem mais parte de um futuro incerto ou pessimista. Estão batendo à nossa porta. Ainda assim, continuam pegando a maioria das pessoas despreparadas. Especialmente no Brasil, onde segundo o Censo de 2022 16 milhões vivem em favelas e comunidades urbanas, e o número de moradores em áreas de risco mais do que dobrou nos últimos dez anos. Também em 2022, o país liderou a movimentação interna das Américas por conta de tragédias ambientais, e no ano seguinte teve um número recorde de desastres geo-hidrológicos.
Ainda que a proliferação de desastres seja realidade em todo o mundo, as pessoas e as regiões não são afetadas da mesma forma. Um exemplo disso está no afastamento das pessoas com deficiência dos debates sobre o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas.
E esse distanciamento é atribuído ao chamado capacitismo ambiental, que se caracteriza pela discriminação das pessoas com deficiência nas atividades de ativismo ambiental e nos fóruns de planejamento para o enfrentamento de desastres causados pelas mudanças climáticas. O que resulta no acesso limitado a informações, recursos e serviços especificamente destinados a essas pessoas.
Ao materializar barreiras físicas, tecnológicas, atitudinais, comunicacionais e informacionais, impede-se o acesso aos artigos de emergência, à informação relevante, à assistência e aos espaços adequados e seguros. A pauta da justiça climática tem tratado pessoas com deficiência como parte de um estrato populacional vulnerável, em vez de discutir a marginalização e a exclusão impostas a essas pessoas; e tem produzido soluções que supõem que toda a população conta com redes de apoio sólidas (o que não procede).
É desumano aguardar passivamente os eventos climáticos esperados sem considerar as pessoas com deficiência, inclusive porque são expostas a maiores riscos nos desastres. A taxa de mortalidade de pessoas com deficiência durante o grande terremoto do leste do Japão, por exemplo, foi duas vezes maior do que a observada entre seus pares sem deficiência. Além disso, questões adjacentes à saúde, como falta de acesso a medicamentos, ameaça no quadro de saúde mental e possíveis agravamentos funcionais são desconsiderados nos protocolos de enfrentamento aos desastres climáticos.
A capacidade de evacuação imediata da pessoa com deficiência e suas famílias é bem menor, assim como a probabilidade de sua remoção antes do desastre. As barreiras dificultam ou impedem os processos de desocupação, já limitados pela profunda exclusão social que marca suas vidas. Apesar disso, recebem menos assistência pós-desastres e são excluídas dos planos de reconstrução e recuperação. São pessoas privadas de apoio social formal e informal, críticos para o enfrentamento desse tipo de situação.
Mas quem são as pessoas com deficiência?
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2022, 16% da população mundial têm deficiência, ou seja, 1,3 bilhão de pessoas, e 80% dessas estão concentradas no Sul Global (mais de um bilhão de pessoas). Os estigmas que prevalecem sobre as vidas das pessoas com deficiência têm permitido que aquelas sem deficiência naturalizem sua invisibilização, mesmo em face da maior vulnerabilidade e da crescente frequência desses desastres. É comum a mídia mostrar carros com a porta submersa por enchentes, porém não são retratadas pessoas com mobilidade em cadeiras de rodas com a água na altura do pescoço.
A inexistência de piso tátil e audiodescrição, Libras, linguagem simples, comunicação alternativa, elevadores e rampas adequadas impede a participação das pessoas com deficiência nos debates e, também, obstaculiza sua proteção nos desastres. São barreiras naturalizadas, posto ser essa uma população histórica e perenemente subalternizada que tem sido impedida de nascer (no caso das políticas de aborto eugênicos de pessoas com síndrome de Down), de maternar com segurança (considerando o despreparo dos serviços de saúde para o cuidado perinatal inclusivo), de sobreviver (em função da não prioridade ao acesso a recursos de suporte à vida por parte de pessoas com deficiência na pandemia de Covid-19), e tem sua esterilização e institucionalização à revelia, para citar alguns exemplos.
A desconsideração da desigualdade e da vulnerabilidade historicamente constituídas joga luz sobre os limites dos planos de enfretamento majoritariamente apoiados na resiliência individual. Portanto, não são considerados o acesso, a acessibilidade e a interdependência, característica humana naturalizada apenas para a parcela sem deficiência da humanidade. O enfrentamento dos desastres ambientais e a proposta de fortalecimento da resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) teriam que focar nas ações em nível comunitário, levando em conta condições sociais e materiais mais amplas.
Não haverá um sistema de resposta às mudanças climáticas inclusivo enquanto não se considerar a experiência corporificada das pessoas com deficiência de todas as naturezas. É urgente deslindar as estruturas que encurralam pessoas com deficiência e familiares, deixando-as morrer nos desastres ambientais. Sem a participação plena não será possível entender os mecanismos de marginalização e exclusão, e nem avançar na valorização e na preservação da diversidade humana e de seus princípios mais básicos, como o direito à vida. A necessidade de reparação é evidenciada nos dados de exclusão social das pessoas com deficiência da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2022 e pela ausência de informações sobre a vitimização de pessoas com deficiência nos cada vez mais frequentes e devastadores desastres ambientais em solo nacional.
Somente no Brasil, quase 19 milhões de pessoas estão com o seu direito à vida ameaçado. O Estado brasileiro, a comunidade científica e os movimentos em defesa da justiça climática precisam se aproximar da população com deficiência para construir, conjuntamente, alternativas de enfrentamento à crise climática e estratégias para o reconhecimento de sua existência em planos, protocolos e diretrizes sobre o tema.
Um novo pacto civilizatório que não naturalize, ou siga naturalizando, o extermínio de parcela significativa da população se faz urgente.