Nem tudo que Donald Trump toca apodrece. E o mercado global da maconha medicinal acaba de comprová-lo. No dia 28 de setembro passado, o presidente americano publicou um vídeo na sua conta da mídia social Social Truth elogiando os benefícios terapêuticos do canabidiol (CBD), um dos muitos canabinóides presentes na planta da Cannabis sativa.
O CBD é estudado cientificamente há décadas e já conta com comprovada eficiência no tratamento de doenças neurológicas, enfermidades degenerativas, epilepsia, dores crônicas, glaucoma e na mitigação de náuseas e outros efeitos colaterais de tratamentos quimioterápicos.
Além de citar vários destes benefícios, Trump defendeu que médicos aprendessem sobre o CBD para poder receitá-lo. O presidente dos EUA afirmou que buscará aprovar a inclusão de tratamentos a base de CBD no Medicare, seguro de saúde federal disponível a maiores de 65 ou para menores dessa idade com determinadas enfermidades que estão no campo dos tratamentos indicados com canabidiol.
Quando as bolsas de valores abriram no dia seguinte, os efeitos do vídeo de Trump foram logo sentidos. Grandes corporações da maconha legalizada tiveram altas significativas no valor de suas ações. Uma delas foi a Tilray Brands, com sede em Nova York, e que teve aumento de 20% nos seus papéis. Essa empresa foi fundada em 2013 com o nome de Tilray e sede no Canadá, entrando em operação nos EUA a partir de uma parceria com uma empresa do estado de Washington, no noroeste estadunidense.
O ano e o estado não foram coincidências, pois em 2012, Washington foi 一 ao lado do Colorado 一 o primeiro estado dos EUA a legalizar a maconha tanto para fins terapêuticos quanto para recreativos, dando início a uma atividade econômica que cresceu rapidamente. Empresas canadenses, que já encontravam ambiente legal favorável, passaram a atuar no enorme mercado dos EUA. Naquele contexto, a Tilray foi pioneira em vários sentidos.
Em 2018, foi a primeira empresa da Cannabis a abrir seu capital na Bolsa de Valores de Nova Iorque/NASDAQ, chegando a valer 1,1 bilhão de dólares naquele ano. Hoje, renomeada como Tilray Brands, a empresa passou a ser parte de um conglomerado global de indústrias do ramo farmacêutico, atuando no Canadá, nos EUA, na Nova Zelândia e na Europa.
Essa empresa e outras que também lucraram após o vídeo de Trump 一 como a Canopy Growth (+20%), Aurora Cannabis (+13) e Cronos Group (+9,5%) 一 fazem parte de um mercado mundial que, em 2022, estava avaliado em 13 bilhões de dólares, com um crescimento anual esperado de 21,8% entre 2023 e 2030.
É importante destacar que o CBD não tem efeitos psicoativos, ou seja, não provoca alterações de estado de consciência. Em outras palavras, diferentemente do Tetra-hidro-canabinol (THC), o CBD “não dá barato”. A somatória dessas duas características 一 benefícios terapêuticos e ausência de efeito psicoativo 一 transformaram a “maconha medicinal” num negócio legalizado de enorme potencial e que, por essa razão, não passou despercebido à indústria farmacêutica.
Essa é a maconha que interessa a Trump, a Cannabis que não afronta a ‘moral e os bons costumes’ e que, comprovadamente, tem muitas propriedades terapêuticas, podendo render muitos bilhões de dólares ao lado de outras drogas psicoativas legais.
Traficantes “do mal”, empreendedores “do bem”
No primeiro dia do seu segundo mandato, Donald Trump assinou uma série de ordens executivas, decidindo com uma canetada sobre temas como a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o perdão para os seus partidários que invadiram o Capitólio em 2022. Dentre os documentos, Trump assinou um que determinou que alguns grupos do crime organizado latino-americano fossem incluídos na lista de ‘grupos terroristas’.
Hoje, organizações como o Cartel de Sinaloa (México), o Tren de Aragua (Venezuela), Los Lobos (Equador) e a Mara Salvatrucha (El Salvador), figuram ao lado de grupos como o Hamas, o ISIS e a Al Qaeda. Ao serem considerados ‘terroristas’, esses grupos deixaram de ser classificados apenas como ‘grupos criminosos’, o que abre a possibilidade de que sejam enfrentados fora dos limites do Estado Democrático de Direito. Isto implica em liberdade para ‘interrogatórios reforçados’ (eufemismo para tortura), prisões sem acusação formal, desaparecimento forçado, confisco de bens sem controle público, entre outros poderes.
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Foi com base nessa ordem executiva que os EUA deslocaram, em setembro passado, uma força tarefa para as proximidades do mar territorial venezuelano, sob a alegação de que Nicolás Maduro comandaria, pessoalmente, um cartel internacional de tráfico de cocaína.
Na mesma toada, Trump “descertificou” a Colômbia do presidente de centro-esquerda Gustavo Petro, acusando o país sul-americano de não colaborar com a política antidrogas estadunidense. Na prática, além da tensão diplomática, a atitude pode levar a sanções econômicas e comerciais, quebra de acordos de cooperação militar, congelamento de empréstimos do FMI, entre outras punições.
No front interno, o governo Trump definiu como prioridade o combate ao comércio e uso de opióides 一 como o fentanil 一 considerando-os “uma praga (…) que ceifa a vida de milhares de Americanos”.
Contexto histórico
A política de drogas americana atual mantém a lógica da War on Drugs, ou “guerra às drogas” criada nos anos 80, e que consiste em identificar a origem de drogas psicoativas ilegais em países estrangeiros que, contrabandeadas por grupos também de origem externa, são vendidas para consumidores estadunidenses por traficantes imigrantes ou de origem estrangeira.
A ‘guerra às drogas’ simplifica muito a dinâmica do mercado de drogas ilegais para manter a imagem do “bem” contra o “mal”, deixando os EUA como “vítimas” de grupos sem escrúpulos provenientes do Sul Global.
A ‘crise dos opióides’ é prova desta simplificação, pois o início da atual ‘epidemia’ de usuários compulsivos foi induzida por empresas farmacêuticas dos EUA a partir dos anos 1990 que lucraram bilhões de dólares vendendo poderosos analgésicos sintéticos como se não provocassem severa dependência química.
Quando, a partir de 2010, autoridades estadunidenses passaram a tomar medidas contra estas empresas, a diminuição da oferta de opióides de origem legal foi suprida por substâncias produzidas ilegalmente.
A ênfase na repressão ao tráfico de drogas estrangeiro e à punição de traficantes negros, asiáticos e hispânicos continua dando o tom da política de drogas dos EUA, o que colabora para produzir o maior sistema carcerário do mundo, com mais de 2 milhões de pessoas presas.
No dia seguinte à assinatura da ordem executiva sobre os ‘cartéis’, Trump perdoou Ross Ulbricht, cidadão estadunidense que, em 2015, foi condenado à prisão perpétua por ser o dono e programador de um site na deep web chamado Silk Road (Rota da Seda) que, entre 2011 e 2013, teria movimentado mais de 200 milhões de dólares em negociações de drogas, a maioria com bitcoins.
Para facilitar o contato entre traficantes e consumidores, Ulbricht teria ganho 13 bilhões de dólares em comissões.
Trump justificou-se dizendo cumprir uma promessa de campanha feita aos libertários ou anarco-capitalistas dos EUA, ultra-liberais que defendem a legalização de todas as drogas para deixar ao mercado o poder de regulá-las. Trump chegou a elogiar Ulbricht pela sua “inventividade e empreendedorismo”, afirmando que a sua condenação foi um abuso de poder.
Capitalismo canábico versus “guerra às drogas”
É importante ressaltar que Ulbricht é um homem branco, rico, formado em física pela Universidade do Texas e versado em economia neoliberal. Claramnte, Trump não dispensa o mesmo tratamento aos negociadores de drogas ilegais com pele escura, origem no Sul Global, que não têm curso superior e cujo idioma natal não é o inglês.
A ‘guerra às drogas’, portanto, nunca foi sobre as drogas em si, mas sobre quem as negocia e consome.
O pesquisador e professor da PUC-SP Paulo Pereira afirma que despontou no mundo um “capitalismo canábico” que define como “o processo de mercantilização da cannabis em nível global, implicando a construção de novas formas de representação da cannabis, novos espaços sociais de produção, comercialização e consumo dessa drogas, bem como na emergência de novos atores e interesses”.
Historicamente associada a grupos marginalizados, a maconha agora ganha novo status. De “erva do diabo” virou cura, planta de mil-e-uma utilidades. Mas esse processo de ‘reabilitação’ da maconha é complexo e passa por aspectos morais, políticos e econômicos.
Do ponto de vista moral, encontra-se a validação das experiências psicoativas com a Cannabis vividas por gerações de pessoas brancas e/ou de classe média que desde o final dos anos 1960 comprovaram na prática que fumar maconha não era a ‘porta de entrada’ para outras drogas mais pesadas, mas apenas um hábito social, com vantagens para a criatividade em uma economia cada vez mais imaterial e eletrônica.
Além da crescente aceitação social da maconha psicoativa (o THC), o reconhecimento científico dos princípios terapêuticos do CBD foi um impulso fundamental para a progressiva legalização.Não apenas do CBD, mas do próprio THC.
No Brasil
Mesmo em países conservadores como o Brasil, o CBD já entrou nos circuitos de aceitação social, médica e moral.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de junho de 2024 que regulou o consumo legal de Cannabis, definiu quantos gramas e quantos pés de maconha uma pesso pode ter para ser considerada ‘usuária’ e não ‘traficante’. A Lei de Drogas de 2006 é omissa sobre isso para todas as drogas ilegais, mas só para a Cannabis é que houve mobilização social, lobby político e disposição judicial para a regulamentação do consumo.
Na perspectiva política, a maconha continua sendo entendida como um ‘problema de saúde e de segurança’ quando vinculada a populações pobres, negras ou indígenas. No dia-a-dia da repressão policial, o ‘usuário’ de maconha costuma ser branco, estudante, profissional e de classe média ou alta. Já o ‘traficante’ é negro, indígena, periférico, pobre, sem emprego fixo e de baixa escolaridade. A decisão do STF dificilmente alterará esse quadro.
Do crime ao empreendimento
Nos EUA, mais de 24 estados já legalizaram a Cannabis para uso terapêutico e recreativo e 13 para uso exclusivamente medicinal. Com isso, apenas 06 dos 50 estados dos EUA ainda proíbem totalmente a maconha.
Diante desse quadro, Trump defende que a legislação federal 一 que ainda proíbe totalmente a maconha 一 seja aliviada para incentivar o mercado legal da planta.
Essa relação entre drogas e capitalismo existe há muito tempo. Na legalidade ou na ilegalidade, o mercado de drogas que produzem estados alterados de consciência é um negócio central da economia global. Nela, não existem drogas que sejam para sempre legais ou ilegais. O status jurídico depende da complexa conjunção entre interesses econômicos, políticos, geopolíticos e morais.
O que nunca parece mudar é a regra do “dois pesos e duas medidas”: quando quem produz, vende, lucra e usa é branco e está no topo da hierarquia social, prevalece a aceitação e a legalidade. Quando quem está na mira é racializado e está na ampla base da pirâmide social, vale a ‘guerra às drogas’. Que não é contra ‘as drogas’, obviamente, mas contra pessoas associadas a elas e que são nitidamente definidas como alvos.