O casamento, além de instituição social, é também um ato jurídico solene, cujo núcleo repousa na manifestação de vontade dos nubentes. Esse pressuposto, que parece óbvio, ganha contornos complexos quando se examina a realidade das pessoas com deficiência intelectual ou mental. O tema não é apenas jurídico, mas também cultural: a célebre novela Vale Tudo trouxe à cena o casamento de Ana Clara com Leonardo, filho de Odete Roitman, após este ter ficado incapaz em razão de um acidente. No enredo, a união serviu como recurso dramático. Mas no mundo real, como ficaria um casamento nessas circunstâncias?
Até 2015, o artigo 1.548, I, do Código Civil previa que era nulo o casamento do absolutamente incapaz de consentir ou de manifestar, de modo inequívoco, a sua vontade. Em outras palavras, tratava-se de uma nulidade absoluta, indisponível, que protegia não apenas o indivíduo, mas também a ordem pública. Com a entrada em vigor da
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI (Lei nº 13.146/2015), Lei nº 13.146/2015 tal dispositivo foi expressamente revogado, eliminando da legislação essa hipótese de nulidade.
A revogação reposicionou a discussão no campo da anulabilidade. Isso significa que, em tese, o casamento de pessoa que não tenha condições de compreender ou exprimir validamente sua vontade não é mais nulo de pleno direito, mas apenas anulável, desde que seja ajuizada ação própria. O fundamento para essa nova perspectiva está na valorização da autonomia da pessoa com deficiência, princípio consagrado tanto na Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009) quanto no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Entretanto, essa alteração legislativa não passou incólume às críticas. Diversos juristas apontam que a eliminação da nulidade absoluta criou uma zona de insegurança jurídica. Se antes a própria ordem jurídica protegia automaticamente a pessoa incapaz de consentir, hoje a validade do casamento depende da iniciativa de terceiros para pleitear a anulação. Isso pode gerar situações em que uniões se mantenham formalmente válidas, mesmo quando não houver manifestação de vontade genuína de um dos cônjuges.
O problema torna-se ainda mais sensível quando lembramos que o consentimento matrimonial é a essência do casamento. Sem ele, não há comunhão de vida nem a mínima base para se falar em vínculo conjugal. Afastar a nulidade e reduzir o problema à anulabilidade pode fragilizar a proteção da dignidade humana, abrindo brechas para abusos.
De outro lado, há quem defenda que a revogação do art. 1.548, I, representou avanço civilizatório, pois evita que a deficiência, por si só, seja motivo de exclusão. O foco deve estar, não na deficiência, mas na capacidade de manifestação de vontade em cada caso concreto. A solução, portanto, não seria voltar à nulidade, mas fortalecer os mecanismos processuais de aferição do consentimento e de garantia da autonomia assistida, como previsto no art. 1.783-A do Código Civil (tomada de decisão apoiada).
O dilema mostra-se, então, em sua plenitude: como equilibrar autonomia e proteção? Se, por um lado, é fundamental assegurar às pessoas com deficiência o direito de construir família, por outro, é indispensável preservar a essência do casamento enquanto ato volitivo. A ausência de consentimento válido não pode ser relativizada sob pena de esvaziamento do próprio instituto.
Nesse contexto, parte da doutrina defende a necessidade de reconstruir a categoria da nulidade em hipóteses extremas, ainda que pela via da teoria geral dos negócios jurídicos, como forma de resguardar a segurança jurídica. Outros preferem confiar exclusivamente na via da anulabilidade, sustentando que eventuais distorções podem ser corrigidas caso a caso pelo Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça tem enfatizado que o foco deve estar na efetiva compreensão e liberdade de manifestação do cônjuge, e não simplesmente na existência de uma deficiência.
O certo é que, com a retirada do art. 1.548, I, o consentimento válido passou a ser, mais do que nunca, a pedra angular do casamento. Cabe ao Judiciário, ao Ministério Público e aos advogados atuarem de forma vigilante para impedir que uniões desprovidas de vontade legítima se mantenham sob a aparência de validade.
Assim, a discussão sobre o casamento da pessoa com deficiência não se encerra na letra fria da lei. É tema que exige reflexão ética, social e jurídica, buscando sempre o ponto de equilíbrio entre inclusão e dignidade. Afinal, se é verdade que não se pode excluir o deficiente do direito de casar, também é inegável que ninguém pode ser casado sem querer.