Imagine ouvir uma música ritmada e, de repente, algumas batidas desaparecerem. Mesmo assim, seu cérebro continua acompanhando o ritmo e preenchendo as lacunas, como se soubesse onde a próxima batida deveria estar. Esse fenômeno é fundamental para diversas atividades do dia a dia, como seguir o compasso de uma canção, entender o que alguém está falando em ambientes ruidosos e prever o rumo de uma conversa. Mas como o cérebro organiza essas informações para antecipar padrões em sequências sonoras?
Com apoio do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), da USP, reunimos uma equipe multidisciplinar, de diversas instituições, para investigar essa questão. O estudo, publicado recentemente na revista PLoS Computational Biology, analisou como o cérebro percebe padrões rítmicos em sequências sonoras com eventos aleatórios.
Um experimento baseado em ritmo
Para testar a percepção rítmica, conduzimos um experimento com 19 participantes, que ouviram sequências de palmas simulando ritmos semelhantes ao samba. Algumas batidas foram removidas de forma aleatória para criar um estímulo imprevisível. Durante a audição da sequencia rítmica, registramos a atividade elétrica do cérebro dos voluntários por meio de eletroencefalograma(EEG), permitindo analisar como o sistema nervoso processa essas sequências variáveis.
O equipamento de EEG permite medir a atividade elétrica do cérebro por meio de eletrodos posicionados no couro cabeludo do participante. Assim, conseguimos observar como a atividade do cérebro se modifica enquanto o participante ouve a sequência de sons.
Para analisar esses sinais, usamos uma abordagem inovadora. Pesquisas anteriores se basearam em métodos estatísticos tradicionais que presumiam como a atividade elétrica do cérebro deve mudar ao ouvir as sequências dos sons. Nossa técnica permitiu identificar os padrões que emergem diretamente da percepção rítmica pelo cérebro.
Usamos um método matemático chamado clusterização, que agrupa respostas neurais semelhantes em categorias. Essa abordagem revelou momentos em que o cérebro percebeu um padrão rítmico que permite antecipar a próxima batida, mesmo na presença de interrupções inesperadas.
Como o cérebro antecipa as batidas?
Os resultados demonstraram que o cérebro usa as batidas mais fortes como pontos de referência para segmentar a sequência sonora em blocos menores, facilitando a previsão do próximo evento. Esse processamento ocorre principalmente na região pré-frontal do cérebro, com um leve predomínio do hemisfério direito.
Além disso, o estudo reforça a hipótese de que o cérebro funciona como um estatístico natural. Ele não apenas reage aos estímulos sonoros, mas também antecipa o que virá a seguir, calculando probabilidades com base no que já foi ouvido e ajustando suas previsões conforme o ritmo se desenvolve. Ele identifica padrões ocultos e organiza os sons de maneira previsível.
O cérebro como uma máquina estatística
Nosso estudo contribui para a conjectura do cérebro estatístico desenvolvido pelo NeuroMat, onde o cérebro é um processador estatístico sofisticado. Segundo essa teoria, ele está constantemente calculando a probabilidade de eventos futuros com base em experiências anteriores.
O embrião da hipótese do cérebro enquanto máquina estatística surge no século XIX. O físico, médico e matemático Hermann von Helmholtz foi quem primeiro a elaborou em sua obra “Tratado da óptica fisiológica”, de 1866. Helmholtz acreditava que o cérebro realizava “inferência inconsciente”, usando conhecimentos prévios e experiências passadas para interpretar estímulos sensoriais ambíguos.
Mesmo sem linguagem probabilística moderna, a inferência inconsciente já pressupunha que o cérebro formulava hipóteses e corrigia interpretações com base em regularidades e experiências. Mas a inferência estatística requer um modelo probabilístico.
Mais de um século depois, o NeuroMat publicou, em 2019, um artigo onde um quadro conceitual matemático foi desenvolvido para investigar os aspectos estatísticos do cérebro. Em sequência, propusemos uma classe de modelos capazes de descrever matematicamente sequências sonoras com aleatoriedade. Assim, pudemos descrever precisamente a estrutura estatística da sequência do samba e buscar essa estrutura nos dados coletados do cérebro.
A partir desse primeiro experimento, passamos a desenvolver a conjectura do cérebro estatístico. Desenvolvemos, por exemplo, o jogo do goleiro — experimento eletrônico onde o jogador deve defender uma sequência de pênaltis em que a posição da bola é definida por uma cadeia estocástica com memória de comprimento variável, na qual a direção do próximo chute é influenciada pelos chutes anteriores, e parte dessas direções é produto de experimentos aleatórios. Portanto, o jogador precisa compreender a estrutura da sequência para defender o maior número de pênaltis.
Os novos avanços da neurociência, com o desenvolvimento de novos modelos matemáticos e protocolos experimentais, vêm reforçando cada vez mais a tese do cérebro como uma máquina de inferências a partir de suas experiências passadas.
Esse mecanismo natural e econômico de previsão pode ter implicações na compreensão da percepção musical e do processamento auditivo em geral. Investigações futuras podem explorar como diferentes tipos de ritmos ou padrões afetam o processamento cerebral.
Essas descobertas podem ser aplicadas, por exemplo, na elaboração de algoritmos capazes de gerar novas músicas, usando os padrões identificados pelo cérebro para escolher suas notas e ritmos, em reabilitação auditiva ou no desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina baseadas em ritmo, ou seja, técnicas que permitam usar a atividade cerebral para controlar computadores.e