Muito antes de Tyrannosaurus rex ou Velociraptor sequer pisarem na Terra, outros dinossauros carnívoros já circulavam pelos ambientes do supercontinente Pangeia, em regiões que hoje fazem parte do Brasil e da Argentina.
Entre eles estavam os herrerassaurídeos, o mais antigo grupo de dinossauros predadores conhecidos. Vivendo há cerca de 230 milhões de anos, durante o Período Triássico, esses animais foram pioneiros em ocupar o topo da cadeia alimentar entre os primeiros dinossauros.
Uma nova pesquisa, publicada este ano, identificou lesões nos ossos do crânio de dinossauros herrerassaurídeos do Brasil e Argentina. Essas são as mais antigas lesões em dinossauros e as evidências mais antigas de comportamento agressivo para o grupo. Os dados indicam que quase metade dos crânios analisados apresentava ferimentos compatíveis com confrontos entre indivíduos da mesma espécie.
Esse tipo de interação agressiva, conhecido como comportamento agonístico, já era documentado em dinossauros de Períodos posteriores ao Triássico (como Jurássico e Cretáceo), mas nunca havia sido identificado com alta frequência em espécies tão antigas. Além disso, os padrões dos ferimentos sugerem que essas brigas eram comuns entre esses primeiros predadores.
A pesquisa foi conduzida no Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia da Universidade Federal de Santa Maria (CAPPA/UFSM), com o apoio de um pesquisador da Universidad Nacional de San Juan (Argentina).
Uma briga de milhões de anos
O estudo analisou crânios fósseis de dinossauros herrerassaurídeos encontrados em rochas do Triássico Superior da Argentina e do Rio Grande do Sul. Alguns deles apresentavam marcas visíveis de lesões ósseas: sulcos, cavidades e áreas de crescimento anormal de osso, concentradas principalmente na face e mandíbula.
Essas marcas não são simples danos causados pela ação de carniceiros após a morte dos animais ou pelo processo de fossilização. Elas mostram sinais de cicatrização, indicando que os ferimentos ocorreram quando os animais ainda estavam vivos e sobreviveram por tempo suficiente para que os ossos iniciassem a regeneração. Essa evidência é essencial para compreender o comportamento dos primeiros dinossauros, algo que é difícil quando se trata de fósseis esqueletais.
A distribuição das lesões, concentradas na cabeça dos animais, também é significativa. Ela aponta para comportamentos direcionados e sugere que esses dinossauros já apresentavam comportamento social que poderia incluir a agressividade, algo antes atribuído apenas a grupos mais tardios, como os grandes terópodes do grupo do T. rex.
Por que esses dinossauros brigavam?
Confrontos entre indivíduos da mesma espécie são comuns em muitos animais viventes, e um comportamento típico dessas disputas é a face-biting, ou “mordida facial”. Quando esse tipo de ataque causa ferimentos nos ossos, as cicatrizes podem se fossilizar, e revelar brigas de milhões de anos atrás.
O novo estudo sugere que esse tipo de comportamento já existia entre os herrerassaurídeos, mesmo sendo um grupo tão antigo. Isso se baseia não apenas nas lesões faciais, mas também no fato de que elas aparecem exclusivamente em herrerassaurídeos dentre os dinossauros daquele Período, o que indica que os confrontos eram comuns no próprio grupo e possivelmente ligados à aspectos sociais.
A frequência das lesões surpreende
Entre os crânios analisados, 43% apresentavam ferimentos compatíveis com agressões, ou seja, quase metade dos indivíduos examinados apresentavam lesões ósseas nesta região do esqueleto. Essa taxa é comparável à de outros dinossauros predadores, mas que viveram muitos milhões de anos depois dos herrerassaurídeos.
Além disso, alguns dos crânios analisados também exibem marcas menos evidentes, que podem indicar outras lesões não confirmadas, potencialmente elevando ainda mais a frequência observada. No entanto, fatores como a má preservação desses fósseis impediram a confirmação definitiva dessas marcas como lesões.
Isso mostra que as interações agressivas não eram eventos raros neste grupo de dinossauros. Pelo contrário, parecem ter sido parte do cotidiano desses animais, possivelmente em disputas por território, comida ou parceiros. Essa constatação amplia nosso entendimento da dinâmica social e comportamental dos primeiros dinossauros carnívoros.
O que isso muda sobre nossa visão dos dinossauros do Triássico?
Muitas vezes, os primeiros dinossauros são vistos como simples e pouco competitivos, vivendo à sombra de outros grupos dominantes do Período. Mas descobertas como essa mostram que, desde os primórdios, eles já eram ativos, complexos e socialmente competitivos.
As cicatrizes podem inclusive nos ajudar a entender a evolução de características como cristas ósseas ou estruturas na cabeça. Em dinossauros carnívoros, especialmente do Jurássico e Cretáceo, já se demonstrou que animais com maior tamanho corporal também apresentavam maior diversidade de ornamentos cranianos, possivelmente resultado de seleção sexual ou disputas sociais. Se algo semelhante também ocorreu com herrerassaurídeos, é algo que estudos futuros podem explorar.
Além disso, o tamanho corporal relativamente grande de herrerassaurídeos e seu papel como predadores de topo reforçam o paralelo com os terópodes, grupo ao qual se assemelham por convergência evolutiva. Este processo explica que linhagens diferentes podem adquirir características semelhantes quando ocupam o mesmo nicho ecológico.
Cicatrizes como janelas para o passado
Comportamentos raramente deixam marcas no registro fóssil. Mas, às vezes, as exceções nos contam muito. As cicatrizes descritas neste estudo funcionam como vestígios fossilizados de comportamento, revelando um aspecto da vida dos primeiros dinossauros que não poderíamos acessar apenas pela anatomia.
Elas também demonstram o valor do estudo de paleopatologias, isto é, lesões e doenças em fósseis, para a compreensão da biologia e ecologia de animais extintos. Ao reconhecer padrões de trauma e cicatrização, podemos reconstruir interações sociais, estratégias de sobrevivência, fisiologia, e até aspectos da evolução do comportamento.
Em suma, essas são as lesões ósseas mais antigas já registradas em dinossauros, e provavelmente refletem um comportamento agressivo que ajudou a moldar sua trajetória evolutiva desde o surgimento do grupo no Período Triássico, onde hoje é a América do Sul. Uma descoberta que, além de preencher lacunas no conhecimento científico, ressalta a importância da paleontologia brasileira no entendimento da origem e evolução inicial dos dinossauros.