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Ciência assume que privação alimentar e desnutrição são fatores de risco para o diabetes mellitus tipo 5 (DM5)

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Ciência assume que privação alimentar e desnutrição são fatores de risco para o diabetes mellitus tipo 5 (DM5)

_O The Conversation Brasil e a revista Cadernos de Saúde Pública/Reports in Public Health (CSP) fizeram uma parceria para trazer ao público artigos inéditos sobre estudos científicos, pesquisas originais e revisões críticas em diversas áreas da saúde coletiva. A revista CSP é publicada desde 1985 com suporte da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e reúne artigos científicos voltados à produção de conhecimento no campo da Saúde Coletiva e disciplinas relacionadas. Este artigo explora a relação entre a insegurança alimentar e o diabetes associado à desnutrição.


A visão predominante que associa o surgimento do diabetes apenas ao excesso de peso e de calorias negligencia outro fator relevante: a privação crônica de alimentos . É justamente nesse cenário que surge o diabetes relacionado à desnutrição, o DM5 (Diabetes Mellitus tipo 5), em que a fome prolongada desempenha papel central na gênese da doença.

Para entender esse quadro, pesquisadores do Global Diabetes Institute no Albert Einstein College of Medicine no Bronx, Nova York (EUA), investigaram o perfil metabólico e genético de pessoas com esse tipo de diabetes. Os pesquisadores demonstraram que pacientes com DM5 não apresentam autoanticorpos nem mutações típicas das formas monogênicas (e mais raras) de diabetes.

Além disso, as pessoas com o DM5 produzem menos insulina do que os portadores de diabetes tipo 2, porém, em maior quantidade do que as pessoas com diabetes tipo 1. Por outro lado, a sensibilidade à insulina é preservada no DM5. Esses achados revelam que esse tipo de diabetes não é apenas uma variante das formas conhecidas, mas uma condição metabólica distinta, intimamente ligada à desnutrição crônica.

Condição metabólica grave relacionada à fome

A insegurança alimentar grave é definida pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) como a falta recorrente de acesso a comida suficiente, levando pessoas a passarem um dia ou mais sem se alimentar. Trata-se, na prática, da violação do direito humano à alimentação adequada. No Brasil, essa condição é medida principalmente pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que classifica os domicílios em segurança alimentar ou insegurança alimentar leve, moderada ou grave.

Descrito pela primeira vez em 1955, na Jamaica, o diabetes associado à desnutrição foi posteriormente documentado em diversos países da África Subsaariana e da Ásia. Na Índia, chegou a representar cerca de 23% dos casos da doença. Em 1985, a Organização Mundial da Saúde chegou a incluir essa apresentação como Malnutrition-Related Diabetes Mellitus, mas retirou a classificação anos depois por falta de estudos robustos.

O interesse científico voltou a crescer com pesquisas que elucidaram os mecanismos pelos quais a exposisão à fome durante a gestação e infância aumentavam o risco de doenças metabólicas e cardiovasculares na vida adulta. O epidemiologista David Barker foi um dos primeiros, nessa área, ao demonstrar a relação entre baixo peso ao nascer e maior risco de doença cardíaca. Posteriormente, Barker mostrou a relação com intolerância à glicose, diabetes tipo 2, hipertensão e alterações no colesterol.

Esse cenário pode ser ainda mais preocupante em países da América Latina, onde a obesidade e carências nutricionais frequentemente coexistem na mesma família — ou até na mesma pessoa —, fenômeno chamado de dupla carga da má nutrição. No Brasil, dados do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil) mostraram que um quarto das pessoas com 50 anos ou mais passou fome na infância, principalmente no Norte e Nordeste. Essas pessoas apresentaram 20% mais chances de desenvolver diabetes na vida adulta. Isso sugere que o histórico de insegurança alimentar pode estar ligado a parte dos casos de diabetes diagnosticados hoje.

A incidência em países de média e baixa renda

A sobreposição de características clínicas com o tipo 1 — como a necessidade precoce de insulina — pode levar a diagnósticos errados, especialmente em países onde a fome severa foi frequente. Isso levanta a questão: em países de baixa e média renda, quantos casos de diabetes não seriam, na verdade, DM5?

A IDF estima que entre 20 e 25 milhões de pessoas no mundo sejam afetadas pelo DM5. No Brasil, embora não haja estimativas específicas para esse subtipo, calcula-se que 16,6 milhões convivam com diabetes,número que pode chegar a 24 milhões em 2050. Ao mesmo tempo, 33 milhões enfrentavam a fome, e 15,5% das famílias viviam em insegurança alimentar grave no período pós-pandemia. Esses dados evidenciam a coexistência de duas crises: o avanço do diabetes e a persistência da insegurança alimentar, reforçando a necessidade de políticas públicas integradas, que aliem prevenção, cuidado em saúde e a garantia do direito humano à alimentação adequada.

A inclusão do DM5 na agenda internacional também traz o desafio de integrar os dados sociais aos diagnósticos de doenças crônicas. Hoje, esses diagnósticos se baseiam principalmente em exames clínicos e laboratoriais, muitas vezes não incorporando o histórico de vida do paciente. Incluir variáveis como o relato de fome na infância ou baixa estatura pode ajudar a identificar grupos de risco. No Brasil, ferramentas como a Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA), questionário rápido de dois itens incorporado ao Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), podem agilizar a triagem de famílias vulneráveis.

O reconhecimento do DM5 também pode influenciar políticas públicas voltadas à gestação e à primeira infância. A má nutrição materna compromete o desenvolvimento fetal e aumenta a vulnerabilidade metabólica ao longo da vida (6,20,21). Garantir segurança alimentar nesses períodos críticos pode prevenir não só a desnutrição imediata, mas também suas consequências de longo prazo, como o surgimento de formas atípicas de diabetes.

Ao propor que a formulação diagnóstica considere dimensões sociais como parte indissociável do processo de adoecimento, o reconhecimento do diabetes relacionado à desnutrição representa uma quebra de paradigma na compreensão das doenças endocrinometabólicas . Para além do debate médico, essa decisão da IDF é também um marco político: coloca a fome no centro da discussão sobre diabetes e reforça que combater a insegurança alimentar é uma estratégia essencial de saúde pública.

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