Imagine tentar entender a forma de um ser vivo apenas por uma descrição verbal. Agora, acrescente a experiência de tocar neste organismo e perceber seus detalhes em três dimensões. Para milhares de pessoas com deficiência visual – que abrange a cegueira, visão monocular e baixa visão – essa possibilidade está se tornando realidade graças à impressão 3D aliada à tecnologia assistiva.
Segundo o último censo do IBGE, cerca de 7,9 milhões de brasileiros têm algum grau de deficiência visual. Para muitos, a aprendizagem significativa depende de recursos táteis, como materiais concretos que estabelecem conexões com os conteúdos. No entanto, esses recursos são escassos, e coleções anatômicas ou zoológicas raramente estão disponíveis ao toque.
Nos últimos anos, iniciativas têm explorado o potencial da impressão 3D como ferramenta de inclusão. Na obstetrícia, por exemplo, projetos imprimem fetos em 3D para que gestantes cegas acompanhem o desenvolvimento dos bebês pelo tato. No ensino de ciências, grupos como o “Incluir-Ciência”, do CEFET-MG, e o “Ciência ao alcance das mãos” vêm ampliando essa fronteira.
Em 2023, criamos também a Rede “3DucAssist”, financiada pela FINEP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), para transformar imagens biológicas em recursos táteis acessíveis. O diferencial está em criar protótipos a partir de estruturas reais, capturadas com tecnologias 3D. Isso permite que conteúdos científicos de ponta, muitas vezes restritos a publicações acadêmicas, sejam literalmente tocados por quem aprende. O material é pensado para escolas, universidades, hospitais e centros comunitários, aproximando ciência de ponta de públicos que antes não tinham acesso a esse conhecimento.
Do laboratório à impressão 3D
Nosso grupo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pesquisa há 13 anos imagens de microscopia para compreender a interação entre parasitos e seus hospedeiros. A ideia de transformar esses registros em peças táteis surgiu em 2022, durante uma expedição ao Pantanal com a equipe dos pesquisadores Heitor Miraglia Herrera e Filipe Martins Santos, da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, MS. A partir deste projeto financiado pelo CNPq sobre impactos das queimadas na saúde ambiental e na transmissão de zoonoses, surgiu nossa primeira parceria.
Essa colaboração deu origem a uma rede de nove laboratórios: sete na Uerj — o SAÚDE3D, de Prototipagem da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), de Tecnologias Digitais no Ensino de Ciências, além de Parasitologia, Helmintologia, Urologia e Biotecnologia de plantas — e dois na UCDB, de Biologia Parasitária e o OrthoMed Biotech. A proposta é integrar áreas diversas, como parasitologia, zoologia, botânica, ecologia, design e educação.
Em colaboração com centros multiusuários de pesquisa, imagens são obtidas por microscopia e tomografia, processadas com softwares abertos e os primeiros modelos produzidos no núcleo SAÚDE3D, que tem como missão unir pesquisa em saúde e modelagem tridimensional. Um dos trabalhos iniciais foi a criação de protótipos de ovos de helmintos, como Trichuris muris (que parasita camundongos) e Ascaris lumbricoides (a lombriga), impressos em bioplástico (PLA), resistente e de baixo custo.
Através desses projetos, nos aproximamos do Instituto Benjamin Constant (IBC) – referência nacional na educação e capacitação profissional de pessoas com deficiência visual, especialmente do professor Aires Silva, que tem vasta experiência em validação de materiais didáticos acessíveis de ciências. Ele também coordena o projeto “Ciência ao alcance das mãos”, que produz e distribui materiais para alunos com deficiência visual.
Testes em sala de aula
Desde fevereiro de 2025, os modelos vêm sendo avaliados por pessoas cegas no IBC. Dois revisores e uma estudante da Educação Básica participaram das primeiras validações, destacando não só a qualidade técnica, mas também a emoção de acessar estruturas antes invisíveis. As sugestões são incorporadas de forma dinâmica, seguindo o princípio da inclusão “nada sobre nós, sem nós” – que reconhece a autoridade e autonomia das pessoas com deficiência como participantes integrais no que é gerado para elas.
Essas avaliações garantem não apenas a precisão científica, mas também segurança, ergonomia e clareza na leitura tátil. Estudos do IBC mostram que as peças precisam ter percepção tátil, legendas em braille, tamanho adequado, segurança no manuseio e fidedignidade ao modelo original. Outro ponto importante é a mediação pedagógica, pois os professores devem entender como os alunos cegos percebem o mundo para orientar a exploração tátil de forma significativa e facilitar a compreensão de conceitos abstratos.
Além do IBC, desde 2021 os modelos são utilizados em aulas práticas da Uerj em cursos de medicina, enfermagem, nutrição e biologia. Mais de 600 estudantes já tiveram contato com os protótipos. Muitos alunos, inclusive os videntes, relataram que, pela primeira vez, entenderam diferenças de texturas biológicas e detalhes da relação intestino e parasitos.
Como acessar os materiais
Atualmente, o acervo conta com cerca de dez protótipos. Eles incluem desde parasitos como Trichuris trichiura, até espécies mais emblemáticas, como os agentes da esquistossomose, da Doença de Chagas e o vírus SARS-CoV-2, da Covid-19. Também já desenvolvemos crânios de animais silvestres do Pantanal, como o cachorro-do-mato e estruturas vegetais da flora brasileira. A seleção de novos modelos depende das linhas de pesquisa da rede e de demandas dos próprios alunos. Um exemplo foi o pedido de estudantes cegos por representações de fraturas ósseas. Assim, garantimos tanto rigor científico quanto relevância pedagógica.
Os materiais aprovados são incorporados ao acervo do laboratório de ciências do IBC, sendo usados regularmente pelos professores. Além disso, podem ser disponibilizados para outras instituições como doação de modelos impressos (quando viável) ou em arquivos digitais no formato .stl, reunidos no repositório digital gratuito da Rede SAÚDE3D. Para acessar, basta entrar em contato pelo e-mail [email protected], ou pelo Instagram @3ducassist.
Já colaboramos com instituições como UFBA, UFMG e UCDB, além de escolas de educação básica. Recentemente, fomos procurados até por uma universidade na Polônia. Enviamos ao professor Roland Wesolowski, da Nicolaus Copernicus, modelos virtuais para impressão e uso em aulas de medicina.
Também buscamos parcerias com museus de ciências. Nos inspiramos em projetos como o The Sensational Museum, que permite explorar arte por meio do tato, som e movimento. Estudos mostram que esse tipo de experiência amplia a conexão com as obras – e acreditamos que os museus de ciência também podem se beneficiar dessa abordagem multissensorial, ampliando seu alcance inclusivo.
Próximos passos
Entre os novos modelos em desenvolvimento estão representações de outros vírus, como os causadores da dengue, chikungunya e zika. Também trabalhamos com protozoários associados a doenças como leishmaniose, toxoplasmose, malária e amebíase. Na área dos helmintos (vermes), a coleção será ampliada com ovos e larvas de espécies popularmente conhecidas, como oxiúros (Enterobius) e tênias (Taenia). Na anatomia e embriologia humanas, os protótipos vão incluir embriões em diferentes fases da gestação e órgãos em tamanho real como cérebro, coração, olho e ossículos da audição.
Outra frente é a oncologia, com modelos de tumores de alto impacto social — pulmão, mama, cólon e pele —, que permitem compreender alterações morfológicas do câncer. Na mastozoologia aplicada à conservação, vamos reproduzir crânios e ossos de outros mamíferos da Mata Atlântica e do Pantanal, como roedores, marsupiais e morcegos. E, na botânica e biologia celular, abordaremos estruturas vegetais ampliadas, que facilitam o estudo da morfologia e do funcionamento das plantas.
A ciência que se toca
Apesar da revolução digital, ainda existem barreiras no acesso à informação. Ilustrações e animações continuam inacessíveis para pessoas cegas, excluindo parte da população do contato pleno com o conhecimento. A inclusão delas começa pela possibilidade de perceber o mundo de forma concreta.
A impressão 3D, somada ao conhecimento científico e ao compromisso social, pode romper barreiras e abrir novas oportunidades de aprendizagem. A mesma tecnologia que permite explorar a forma de um parasito pode, no futuro, ampliar o acesso a conteúdos de arte, ecologia, história e saúde. O toque, tantas vezes reprimido em museus e laboratórios, torna-se, aqui, ferramenta legítima de descoberta e pertencimento.
A divulgação deste artigo contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes).